quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Rumor Branco. Almeida Faria. « Por egoísmo choras. Ele porém olhava-a sem a ver porque desentendia. E isso a fazia perguntar-se: será que o amor renova realmente tudo em que toca e aceita iluminar? Será que aquele corpo para lá da morte alguma coisa significa mais que aquele corpo para sempre morto?»

jdact e cortesia de mariobotas

I Fragmento
«Também o dia pouco consentia. Um no outro sorriram: tive saudades tuas. Respondeu: e eu. E na verdade. não bem saudade mas presença sobre a pele palpável. Ela sabe: amor tu sabes. É o que lhe dizes num silêncio no silêncio que se fez nos olhos dela reflectido: amor tu sabes. Agora epetes muitas vezes seguidas a meia voz tranquila. E ela reflectindo: amor sabemos se o tempo nos consente. Porém que pés ecoam apressados subindo essa insegura escada pisada sempre a medo? Que golpes são socados contra a já aberta porta? Por que nós de dedos ansiosos foram soados golpes? Por que entraste Regina? e contigo a notícia: Graça vem a tua mãe morreu. Parece sem sentido. Ela o sabia e mesmo assim se erguia diante dos olhos da outra sufocados saiu. Regina a seguiu fechando devagar a porta sobre teu espanto deitado na tábua apodrecida. Nitidamente a viste em breve entrando em casa atravessando o mudo átrio àquela hora vazio logo a seguir à morte o irmão correndo ao seu encontro com lágrimas nos olhos ela abraçando-o muito: por que choras se a mãe agora já não sofre? por que choras então senão por ti? Por egoísmo choras. Ele porém olhava-a sem a ver porque desentendia. E isso a fazia perguntar-se: será que o amor renova realmente tudo em que toca e aceita iluminar? Será que aquele corpo para lá da morte alguma coisa significa mais que aquele corpo para sempre morto? Entrou no quarto sobre cuja cama a mãe jazia. As mãos enclavinhadas sobre o peito. A cabeça suavemente voltada para o lado. Os lábios sem expressão. Os olhos pálpebras. Ao canto a criada que conhecia a morte que a vestira lavara amortalhara e vestira e lavara seus cinco filhos mortos como cumprindo um natural destino a criada estava ajoelhada. E Graça a si se interrogava até quando recordaria aquela voz e sentia que um verme lhe subia na garganta e queria asfixiá-la levando-a a correr pelo corredor em direcção ao alugado quarto onde tu não estarás onde unidos pelo sexo osso a osso no cerne outros desconhecidos casuais amantes amarão mas onde ainda ficaste sentindo em tuas mãos o seu perfume dela que te foge e temes que não volte. Ergues-te e partes.
Em baixo à entrada um homenzinho gordo e enfiado pede-te seco o dinheiro que esquecias. A chuva não parava. Desde a esplanada em frente acena-te Regina. Atravessas a praça sem olhar o trânsito e no café molhados os ombros e a cara vais com Regina pelo braço para uma mesa ao canto. Nos vidros não se vê a rua da chuva que os martela e se desfaz em espuma. Chega o criado magro. Pedes: duas bicas um bagaço. Logo ela: dois dois bagaços. Depois ficam calados. Nenhum se atreve a começar. As suas mãos nervosas tamborilam sobre o tampo de mármore. És tu quem fala: repara a bátega parou vamos aproveitar para dar o fora: mas para onde se ainda nem tomámos o café: não importa vamos que se amole: talvez para minha casa: para qualquer lado que não este. Ela em voz alta ao criado: já não bebemos os cafés nem os bagaços desculpe demorou de mais.
Na avenida baça correm carros rodas respingando luzes liquefeitos reflexos nos vidros nos cromados. O céu fundo conserva laivos de azul-chumbo. Ela propõe: vamos de taíxi. Vão de táxi e no táxi Regina começa uma confusa conversa: o que o amor é é invenção quando uma vez amei ele não soube que o amava nunca soube via-o vejo-o ainda hoje mas amava-o tanto desejava-o tanto queria tanto dar-me que um dia me assaltou a ideia de estar grávida dele não sei como mas dele sentia-me mesmo grávida com todos os sintomas quer dizer engordei as regras demoraram e quando eu aguardava que voltassem não voltaram. À porta do prédio pára o táxi. Entraram chamaste o elevador subiram ao oitavo sentaram-se na sala. Acendeu um cigarro. O fósforo iluminou-lhe a ágil cara de curtos cabelos negros cortados quase como os de um rapaz espessos sobre o pescoço alto: tenho aí sandes cerveja uma garrafa de leite no frigorífico comemos aqui em lugar de sairmos: eu não como em todo o caso acho que tu precisas: como queiras volto num instantinho. Saiu pelo corredor do apertado apartamento onde vivia com mais duas amigas que costumavam jantar na cantina ou em casa de conhecidos ou família. Quando veio da cozinha com o tabuleiro cheio quis continuar a conversa interrompida. Tu porém ligas o gravador e escolhes uns poemas que Regina dissera. Em catadupa as palavras da fita saltaram. A voz dela nitidíssima chega ao recitar a mensagem duma estranha e anónima e por isso mais estranha balada escocesa do século dezasseis:
  • andava eu sozinho a passear ouvi dois corvos a conversar e um perguntava ao seu par hoje onde havemos de ir jantar? Atrás dessa represa abandonada sei que um cavaleiro morto de fresco está e ninguém sabe que ele ali jaz excepto o seu falcão a sua bela esposa e o seu galgo. O galgo porém foi para a caça o falcão foi procurar aves selvagens a esposa arranjou outro homem já podemos assim ter um tranquilo jantar. Tu sentar-te-ás na sua testa alva deixas-me os olhos verdes para debicar juntos lhe arrancaremos os cabelos dourados forraremos o nosso ninho calvo. Muita gente em sua busca correrá onde ele foi ninguém saberá sobre os seus brancos ossos descarnados para sempre o vento soprará.
In Almeida Faria, Rumor Branco, Editorial Caminho, 4ª edição, Lisboa, 1992, ISBN 972-21-0746-1.

Cortesia de Caminho/JDACT