sábado, 16 de fevereiro de 2013

O Anacronista. Crónicas. Manuel António Pina. «Numa sociedade capaz, como todas as sociedades jovens e criadoras, de infância, eles e o seu trabalho sujo têm certamente lugar; intolerável é que lhes permitamos que usurpem o lugar dos poetas e dos guerreiros e que os ostentem por aí»


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(Continuação)

Contra os Economistas
«Que coração, de homem ou de sociedade, sobreviverá alimentando-se, não do desmesurado sangue dos sonhos, mas de programas e de projectos? Com o fito de receber o prémio do sucesso, intrigante e inquietante palavra! Muitos de nós procuraram, viva ou morta, a infância dentro de si e entregaram-na, amarrada de pés e mãos, aos carrascos. E pior: vista daqui, parece que a própria sociedade, no seu conjunto, fez o mesmo. A alma dos povos, como a alma dos homens, precisa de horizontes largos e irrealizáveis, e nos últimos tempos a nossa alma colectiva foi metodicamente aprisionada nos limites da Balança de Pagamentos e de um montão de siglas sonoras e indecifráveis, e corrompida pelo comércio e pela usura. Como no Admirável Mundo Novo de Huxley, palavras como solidariedade e igualdade caíram em desuso e tornaram-se obsoletas e desprezíveis; e mesmo ideias imensas como a de liberdade foram reduzidas às dimensões mesquinhas do mercado. A grandeza, para, os liberais profetas do sucesso, corresponde, mais ou menos, ao volume da facturação e dos resultados líquidos, e uma mecânica legião de economistas e de gestores atarefa-se monocordicamente em convencer-nos de que a felicidade é a mesma coisa que taxas de juro baixas. Todos os dias leio nos jornais barbaridades do género!.
Não que ache que os economistas são gente inútil; pelo contrário, são talvez imprescindíveis. Cabe-lhes manusear as matérias mais porcas que as socie.dades imemorialmente geram:
  • o dinheiro e a usura.
Aflige-me é que possam, com as mãos sujas dos dejectos do corpo social, aproximar-se da alma e do espírito das sociedades e contaminá-los com a sua ciência e a sua linguagem de escravos. Numa sociedade capaz, como todas as sociedades jovens e criadoras, de infância, eles e o seu trabalho sujo têm certamente lugar; intolerável é que lhes permitamos que usurpem o lugar dos poetas e dos guerreiros e que os ostentem por aí, sem escândalo, nos discursos e na lapela». In Jornal de Notícias, 29/1/92.

Sem Sombra de Pecado
A verdade é infelizmente esta: os homem são bichos agressivos e maus. A cultura, ensinou Freud, serve justamente, como outras instâncias sociais, para debilitar e desarmar essa agressividade. Instalando uma consciência moral no interior dos homens como uma guarnição militar numa cidade conquistada, a cultura mantém os seus instintos primários sob permanente e rigorosa vigilância. Por isso a cultura faz os homens infelizes e culpados. Mas, desta forma, a cultura é também condição da existência e da sobrevivência da vida social. Sem valores culturais, sem ideias, sem ideais, isto é, sem renúncia e sem angústia, uma sociedade não passa de uma grotesca barbárie mais ou menos organizada.
Talvez o maior erro do marxismo tenha sido o seu optimismo, a sua injustificada confiança na natureza humana, incluindo a natureza humana dos marxistas.... Mas, provavelmente, o pior crime dos liberais après la lettre, que por aí agora andam é o do cinismo. Os bárbaros tomaram de assalto a cidadela:
  • os relatórios das empresas, os projectos económicos, os programas dos partidos e dos governos ululam desvairadamente por agressividade e por competitividade; o lucro e o vampirismo social tornaram-se no desmedido motor do novo progresso, a iniciativa privada, numa feroz fortaleza fechada onde se desfazem os destroços das últimas instituições fundadas na solidariedade e na cultura. Já vi pateticamente defender, a seguir à privatização e sujeição à lógica do lucro das escolas, dos hospitais e por aí adiante, também a apropriação privada dos rios, dos mares, do próprio ar que respiramos!» 
In Manuel António Pina, O Anacronista, Crónicas, Edições Afrontamento, 1994, ISBN 972-36-0323-3.

continua
Cortesia de E. Afrontamento/JDACT