quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Homenagem. Adriano Correia de Oliveira. As minhas Barbas. Óscar Lopes. «… um “poeta em acção”, um poeta que tende para o homem responsável e total. A sua canção tem o seu ponto de partida mais reconhecível no fado estudantil coimbrão, lírico, com uma linha melódica apoiada na guitarra e/ou viola»

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«Uma das feições mais salientes da nossa vida artística dos anos 60 é o regresso da poesia de grande publico à sua relação conjugal com a música. Essa reconciliação entre a música e a poesia de intervenção cívica integra-se então numa voga internacional de balada democrática e, entre nós, está em estreita relação com os movimentos estudantis que marcaram o início e o final desse decénio de 60. É certo que a tradição de poetar directamente para o violão vinha já de João de Deus e até do árcade de origem brasiIeira Caldas Barbosa, que se auto-alcunhou de Calda de Açucár. É certo que Augusto Gil e António Nobre escreveram quadras vocacionadas para o canto; e, quer o fado lisboeta, quer o fado coimbrão estão ligados a uma vária autoria poética a que conferem, por vezes, uma espécie de consagração pelo anonimato. Mas a poesia de resistência dos anos 60 deriva mais directamente daquela que, pela mão por exemplo de Carlos de Oliveira e Gomes Ferreira, assinalou o primeiro alento de luta política democrática do final da II Guerra Mundial. Mais tarde, após o 25 de Abril, surgirão realizações de uma poesia não apenas unida à música vocal e instrumental, mas ainda ao teatro, ao espectáculo em geral, e, em suma, àquilo que poderíamos chamar a arte total em acção.
Permita-se-me lembrar que a palavra de étimo grego drama designava, na origem, precisamente isto, poesia em acção, e que a palavra de étimo latino actor equivale originariamente a agente, pois as peças de teatro eram, em latim, concebidas de início como res gerendae, o que também se pode traduzir por poesia em acção. Adriano Correia de Oliveira é um poeta em acção, um poeta que tende para o homem responsável e total. A sua canção tem, sem duvida, o seu ponto de partida mais reconhecível no fado estudantil coimbrão, lírico, predominantemente elegíaco, com uma linha melódica apoiada na harmonização à guitarra e/ou viola, e um páthos tipicamente romântico nos portamentos que prolongam ad libitum as sílabas tónicas das palavras de efeito. Mas os dois grandes temas da juventude académica de então eram as guerras injustas e dementadas contra os povos colonizados e aquele conjunto de aspirações que se exprime pela bela palavra liberdade. O soldado que vai à guerra e volta num caixão de pinho é a projecção de um destino provável para esses jovens que, em termos cantados pelo nosso trovador, fazem da capa negra a bandeira da liberdade. Para alguns, essa liberdade cingia-se às tradições liberais e à oposição a uma guerra que, no nosso tempo, parecia já, evidentemente injusta, por uma razão que os antigos liberais, paradoxalmente, ainda não eram capazes de ver. Mas Adriano Correia de Oliveira esteve desde cedo e até à morte com aqueles para quem a liberdade se concretiza em metas como a abolição da exploração pela mais-valia, como a libertação da terra latifundiária, como a realização programática e até constitucional das melhores virtualidades humanas, individuais e colectivas, e como a autêntica autodeterminação nacional, na economia e também na cultura.
E é para cantar todas estas liberdades, formais e reais, que Adriano mobiliza símbolos que vêm de toda a tradição poética portuguesa: são as barcas que já para a guerra levavam, à amiga, o amigo das cantigas trovadorescas de Martim Codax; são as águas, que constituem o arquétipo das almas apaixonadamente livres da Menína e Moça de Bernardim; e é o vento, símbolo romântico, e, entre nós, herculaniano, da paixão e da revolta. E nos poemas cantados por Adriano são ainda bem legíveis as tradições trágico-marítimas de cinco séculos, são-no traços satíricos populares da Restauração antifilipina, contra a integração de Portugal na grande Europa reaccionária de então dos Habsburgos, são-no legíveis motes dos liberais cercados no Porto em 1832, da insurreição patuleia e da propaganda republicana. E, para além destas vozes históricas, há timbres vocais específicos que assinalam regiões várias da nossa sensibilidade popular». In Óscar Lopes, Homenagem a Adriano Correia de Oliveira, Uma Arte de Música e Outros Ensaios, Oficina Musical, Porto, 1986.

Cortesia de OMusical/JDACT