quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

A descoberta da economia-mundo. Immanuel Wallerstein. «… pelo menos durante alguns séculos, pela criação de uma força de trabalho coagida, servos e corveia, escravos, peones, la mita. E como os habitantes locais muitas vezes resistiram a um tal trabalho, era preciso ou proibi-los de se deslocarem…»

Cortesia de wikipedia

A História é Geográfica
«(…) Antes de mais, reorganização. Para optimizar a produção rentável é necessário, como toda a gente reconhece, especializar-se. Para os economistas clássicos, a especialização é uma escolha feita de comum acordo pelo empresário e o trabalhador que maximiza as vantagens para todos. Mas no mundo real, como toda a gente sabe mesmo se se recusa a admiti-lo, a escolha é imposta e é vivida com muito sofrimento pela grande maioria das pessoas. Talvez que no início dos descobrimentos o objectivo e mesmo a realidade do comércio fossem a troca de produtos que cada um dos lados já produzia, a troca mais ou menos igual de um excedente mais ou menos natural. Mas o comércio rapidamente se inclinou numa direcção inteiramente diferente. Os que eram mais fortes, e, desde os descobrimentos, esses eram quase sempre os europeus, impunham uma produção primária aos povos com quem faziam trocas. Lentamente aqui, mais rapidamente acolá, a Europa exigia o desenvolvimento de uma produção primária especializada, diferente segundo as regiões, uma produção das culturas comerciais (cash crops, como dizem os historiadores) ou uma produção orientada para a exportação (como dizem hoje em dia os economistas).
É preciso pensar em tudo o que implica a criação de uma tal produção primária. Antes de mais, há que escolher o terreno para a implantação. E normalmente, necessariamente, há que deixar de fazer uma outra coisa nesse terreno. Esta outra coisa era muitas vezes, talvez sempre, uma produção alimentar para o consumo local. É necessário, pois, substituir esta produção alimentar local por uma qualquer importação, por vezes, de uma região vizinha, por vezes, de terras distantes. E como esta nova produção dos cash crops exige por via de regra trabalhadores mais ou menos permanentes, bem enquadrados, coloca-se o problema do seu recrutamento e da sua manutenção, um problema resolvido com muita frequência, pelo menos durante alguns séculos, pela criação de uma força de trabalho coagida,  servos e corveia, escravos, peones, la mita. E como os habitantes locais muitas vezes resistiram a um tal trabalho, era preciso ou proibi-los de se deslocarem ou importá-los de outro lado, o que criou outras formas de comércio, o trato de escravos, os contratados.
Este processo de periferização das zonas onde eram impostos trabalhos forçados ou coagidos implicava uma transformação das zonas centrais. Não insistirei sobre os processos mundiais de industrialização nem sobre a constante transformação de tudo em mercadoria. É a história do capitalismo enquanto sistema. Assinalo simplesmente que o resultado, ao fim de 500 anos, é uma polarização global nos planos económico, social e político, que não cessa de aumentar. Já não existem zonas relativamente estáveis do ponto de vista cultural. As identidades são reivindicadas no seio de uma turbulência enorme e perturbadora. Os ódios inter-étnicos constroem-se através do recurso a uma historicidade que tem uma existência muito débil. E, geograficamente, as pessoas já não estão de modo nenhum onde estavam há 500 anos. As migrações sobrepõem-se às radicações ditas tradicionais. Em segundo lugar, destruição. Em 500 anos da vida do sistema-mundo moderno, a vida na Terra transformou-se mais rapidamente do que jamais havia acontecido. Não estou certo de que possa dizer-se que esta transformação foi maior do que qualquer uma outra. Mas o que pode dizer-se é que esta transformação criou uma série mais vasta de perigos à continuação saudável do nosso mundo social do que qualquer uma outra desde o começo daquilo a que chamamos a vida histórica da humanidade, por exemplo, destruição em curso da camada de ozono, enfraquecimento da diversidade biogenética, diminuição na Terra da vida biótica essencial para a sua regeneração, aquecimento da Terra, e assim por diante». In Immanuel Wallerstein, A descoberta da economia-mundo, Comunicação ao colóquio Le Portugal et le Monde: Lectures de l’Oeuvre de Vitorino Magalhães Godinho, Paris, 2003, Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 69, 2004.

Cortesia de RCSociais/JDACT