quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Romance Histórico no Romantismo Português. Castelo Branco Chaves. «’Romana é a raiz das nossas leis’; ‘romano o princípio de bom número dos nossos costumes’; romana e romaníssima uma boa parte dos acidentais do nosso culto; ‘romanas muitas das nossas superstições’; e ‘até romana a nossa língua’, em palavras»

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Oposições e Objecções
«(…) De resto, em Portugal, os próceres da nova escola apresentaram-se desde o início mais como renovadores do que como revolucionários: renovadores da linguagem literária, ressuscitadores da tradição nacional, iniciadores da nova estética e novos géneros e mais libertadores da tirania imitativa do clássico do que propriamente da literatura clássica. Castilho, ao prefaciar em 1841 a sua tradução de As Metamorfoses de Públio Ovídio Nasão, opõe justificadas razões ao medievalismo romântico: Mas (objectarão alguns) não são estas antigualhas greco-romanas, as que hoje valem e se procuram no mercado intelectual, mas sim as da idade-média; é isto: primeiro, porque as da Idade Média, com estarem mais próximas, estão por ora menos averiguadas, e ainda as não reduziram, como as romanas e gregas notícias, a dissertações, tratados e lexicons amplíssimos; ainda não tiveram seus Grevio, Gronovio, Heinsio, Petisco, Rosin, Winckelmann, etc.; segundo, porque a Cavalaria, com sua profissão de fé para com Deus, lealdade para com os homens, amor, galantaria, e protecção para com as mulheres, vem, muito mais do que o Paganismo, com as opiniões e costumes do nosso tempo; e terceiro, porque por esta mesma segunda razão, e por serem superstição e barbaria da Idade Média muito mais fecundas em terror, de necessidade haviam de prevalecer, como prevaleceram, para moda.
Não dirão que enfraqueço ou dissimulo os argumentos contrários; mas são eles por ventura invencíveis? Examinai-os de perto. O primeiro terá grande força por parte dos autores, mas nenhuma por parte dos leitores, que são infinitamente maior número. Para um escritor, que entre os do seu país quer, pode, e deve primar, facilmente concordo em que o explorar minas virgens lhe há-de ser muito mais agradável trabalho, do que lançar mão das riquezas já por outros amontoadas. Mas desses verdadeiros criadores da história íntima da sua Pátria, e lidos por todos, quantas dúzias me apontareis? Teve a Inglaterra um Walter Scott; poderia ter a França um Vítor Hugo; começou e há-de chegar a ter Portugal um Herculano. Quanto ao restante dos escritores e escrevinhadores, e a todo o comum do Público, especialmente entre nós, tão nosso é o que nos livros dos Gronorios está averiguado, como o que anda nas crónicas fradescas e cartórios do Reino jaz escondido. Tão nova lhes será, e por isso tão grotesca, a descrição da ceia de Trimalcião miudada por Petrónio, como o de um jantar de homens de armas à roda da caldeira e à sombra do Rico Homem Egas Moniz. Tão insólita e divertida coisa a relação que Apuleio lhes fará das posses e malefícios das feiticeiras da Tesalia, como a lenda das diabruras do santo frei Gil.
O segundo argumento, que versa sobre a maior analogia que dizem ter com este mundo da Liberdade o mundo feudal, por ser cristão, cavaleiro e namorado, por negação se contraria; porque se bem lançarmos as contas, achar-se-á que não temos nós, ainda hoje, menos daqueles remotíssimos Pagãos, do que destes Cristãos afastados. Romana é a raiz das nossas leis; romano o princípio de bom número dos nossos costumes; romana e romaníssima uma boa parte dos acidentais do nosso culto; romanas muitas das nossas superstições; e até romana a nossa língua, em palavras, em figuras e tropos, sem alusões e reminiscências, sem rifões e anexins e até pela diuturnidade do trato, com que ainda há dois dias, frequentávamos romanos e romaníssimas ficaram as feições das nossas virtudes e o carácter guerreiro e vagabundo da nossa glória. A citação foi longa, mas tão ignorados estão hoje os escritos de Castilho que ela se justifica, porque ele foi o mais esclarecido e o mais elegante dos opositores que o nosso primeiro romantismo encontrou à sua estética. Castilho considerou o maravilhoso romântico como muito menos expressivo e muito menos belo que o maravilhoso pagão. Castilho não acreditava no popularismo estético dos nossos românticos e com uma razão muito sólida, uma vez que Portugal contava então mais de 90 % de analfabetos. Para o tempo que ia noveleiro e dramático, em que o sublime da arte consistia, segundo Castilho, em estender o ânimo dos leitores sobre uma ideia, como sobre um potro de martírio, dar-lhe tratos e queimá-lo a fogo lento consistindo a sua principal missão em entristecer,
aterrar e desanimar a espécie humana.
Quanto à moral, Castilho considerava que, na literatura antiga, cada atentado contra ela só tinha o seu próprio nome, ao passo que na novela e no drama românticos o adultério, o roubo, o homicídio aparecem sedutoramente atractivos. Para ele era falsa toda a arte literária que não tivesse por escopo a beleza e por fim a dignidade humana. Não teve Castilho impugnação, nem, que fosse notório, houve romântico que levantasse a luva. Os românticos portugueses só se bateram na guerra civil, no campo das letras não lutaram e, em verdade, mesmo que o desejassem, não tinham com quem». In Castelo Branco Chaves, O Romance Histórico no Romantismo Português, Instituto de Cultura Português, Centro Virtual Camões, Instituto Camões, oficinas Gráficas da Livraria Bertrand, 1980.

Cortesia do I.Camões/JDACT