quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Ensaio sobre o Absurdo. O Mito de Sísifo. Albert Camus. «… livro de terrível beleza com a sua aguda apreensão do horror nas armadilhas do quotidiano. O seu reforço ao inconformismo e à recusa a todas as fugas. O seu empenho intransigente em valorizar e enriquecer as lutas da lucidez»

Cortesia de wikipedia

O mito e a realidade
«Entre as maiores manifestações da consciência crítica no século XX a presença de Camus é certamente uma das mais generosas. Sobretudo agora, quando tantas das suas reflexões podem ser redescobertas como advertências ou diagnósticos de espantosa acuidade e rigor intelectual. Não há como duvidar de que o homem dos nossos dias tem tudo para abrigar conflitos ainda mais intensos, e mais devastadores, ou mais fecundos, que os de todas as outras épocas. É certo que ele contou com enormes precursores, mestres que foram ao fundo do desenvolvimento moderno de suas emoções, e suas razões, como Nietzsche, Dostoiévski, Proust, Kierkegaard, Kafka (para só ficarmos em alguns dos nomes mais caros a Camus), e chega, hoje em dia, aos desdobramentos efectivos e consistentes das revoluções de Darwin, Marx, Freud, Einstein. Mas, até mesmo por isso tudo, os homens presentes”, na vida presente, estão ainda mais sós e dilacerados. Há uma busca desesperada, mas persistente, de novos valores. Como toda possibilidade dos sistemas mágicos ou metafísicos se encontra pulverizada, como só insiste ou resmunga nos desvãos do medo, nos laboratórios da psicopatologia ou em sinistros desvios de igreja e dissimulação, esse homem presente só pode contar consigo mesmo, seu cérebro, seus sentidos, suas mãos, seus meios. Daí o encontro, cada vez mais frequente, com o absurdo. E face a face com a sua condição, esse homem tem muito poucos amigos. Um deles, de extraordinária inteligência e lealdade, é Albert Camus. Particularmente neste caso de O mito de Sísifo, livro de terrível beleza com a sua aguda apreensão do horror nas armadilhas do quotidiano, seu reforço ao inconformismo e à recusa a todas as fugas, seu empenho intransigente em valorizar e enriquecer as lutas da lucidez. Camus o escreveu no começo da II Guerra Mundial. É extremamente curioso, mas de toda coerência com o seu pensamento, que ele não se detenha no problema da guerra e a rejeite radicalmente nas entrelinhas, fazendo do homem absurdo o último a poder aceitá-la a compactuar com as suas aberrações. Quem coloca em primeiro plano a revolta, o discernimento, a discussão da morte voluntária, a oposição às esperas e esperanças infundadas, a realidade física ou a repulsa a qualquer tipo de servidão está plasmando indirectamente a atitude do anti-autoritarismo e, em consequência, propondo uma paz insubmissa, guiada ao mesmo tempo pela razão e pela paixão amorosa (especialmente nos seus modelos do homem absurdo, quando trata de Don Juan, dos comediantes e dos conquistadores). Mesmo neste último caso, mobilizado como todo o mundo, o filósofo passa a opção pela luta e pela resistência, mas também o desprezo pela guerra e seus ingredientes: A grandeza mudou de campo. Ela está no protesto e no sacrifício sem futuro. Mais especificamente, Le mythe de Sisyphe (1942), que, não vamos esquecer, o autor publicou aos vinte e nove anos, é a primeira formulação teórica da noção de absurdidade, isto é, da tomada de consciência, pelo ser humano, da falta de sentido (ou, portanto, do sentido absurdo) da sua condição. Situando a questão nos planos da sensibilidade e da inteligência, Camus trabalha com designações que muitas vezes se confundem, na base de estímulo e resposta assumidos com o mesmo nome. Assim, o homem absurdo é o que enfrenta lucidamente a condição, e a humanidade absurda. Antecedido intuitiva e literariamente  pelo génio de Franz Kafka, Camus é o primeiro a descrever objectivamente as situações e consequências da absurdidade, compreendendo a sua lógica e propondo a sua moral». In Mauro Gama

Introdução à edição original
«Fui posto a meio caminho entre a miséria e o sol, escreve Albert Camus em O avesso e o direito. Ele nasceu numa propriedade de vinicultura perto de Mondovi, Constantina, na Argélia. Seu pai foi mortalmente ferido na batalha do Marne em 1914. Com a libertação, o Combat, de que ele é o redactor-chefe, é um diário que pelo que reclama e por seu tom, faz época na história da imprensa. Mas é o escritor que já se impõe como um dos cabeças da sua geração. Em Argel, tinha publicado Núpcias e O avesso e o direito. Erroneamente vinculado ao movimento existencialista, que atinge o apogeu no pós-guerra, Albert Camus escreve, na verdade, uma obra articulada em torno do absurdo e da revolta. Talvez tenha sido Faulkner quem melhor resumiu o seu sentido geral: Camus dizia que o único verdadeiro papel do homem, nascido num mundo absurdo, era viver, ter consciência de sua vida, de sua revolta, de sua liberdade. E o próprio Camus explicou como havia concebido o conjunto de sua obra: No início eu queria exprimir a negação. Em três formas: romanesca, foi O estrangeiro; dramática, Calígula, O equívoco; ideológica, O mito de Sísifo. E previa o positivo em três formas também: romanesca, A peste; dramática, O estado de sítio e Os justos; ideológica, O homem revoltado. Já entrevia uma terceira categoria, em torno do tema do amor. A peste, assim, iniciado em 1941, em Oran, cidade que servirá de cenário para o romance, simboliza o mal, um tanto como Moby Dick, cujo mito impressiona Camus. Contra a peste, os homens adoptarão diversas atitudes e mostrarão que o homem não fica numa completa impotência diante da sorte que lhe cabe. Esse romance da separação, da infelicidade e da esperança, lembrando de maneira simbólica aos homens de seu tempo o que acabavam de viver». In Pascal Pia

Um raciocínio absurdo
Ó minha alma, não aspira à imortalidade: esgota o campo do possível. In Píndaro

As páginas que se seguem tratam de uma sensibilidade absurda que se pode encontrar esparsa em nosso século, e não de uma filosofia absurda que o nosso tempo, para sermos claros, não conheceu. É, portanto, de uma honestidade primordial assinalar, logo de início, o que elas devem a certos espíritos contemporâneos. Minha intenção de ocultá-los é tão pequena, que eles se verão todos citados e comentados ao longo da obra». In Albert Camus, O Mito de Sísifo, Ensaio sobre o Absurdo, Livros do Brasil, ISBN 978-972-38-2759-0.

Cortesia de LBrasil/JDACT