segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Carta a D. Luís sobre as Vantagens de ser Assassinado. Fialho de Almeida. «Em 19 de Outubro, pelas 11 horas e 5 minutos da manhã, morte de S. M. o rei Luí I, no palácio de Cascais. Desde muito se previa desfecho trágico à enfermidade do pobre agonizante…»

Cortesia de wikipedia

O seu enterro
«(…) De mais, V. M. já me conhece. Ora se não!... Eu era um que estava de chapéu de coco, num dos bancos do Aterro, haverá seis anos, uma tarde que V. M. passou de lunetas fumadas. Por sinal que até lhe mostrei o Diário de Notícias… tenho vinte e cinco anos de idade, lindo talhe de letra, e dês’que me meteram o ler e o escrever no corpo, ando mesmo hidrófobo por espatifar um desenvergonhado. Contrataste-me, senhor! Há em mim um sicário à altura da importância europeia de V. M., e garantias! Fui eu que atirei a bomba às janelas do rei do Porto, Correia Barros, de combinação com ele mesmo. Sou portanto um regicida com prática na província, um regicida em segunda mão, bem conservado, e podendo mostrar abonações como o primeiro. Juro que não farei questão de preço. Somente, como apesar do meu ódio, eu não quero que V. M. morra, porque enfim pode vir outro pior, combinaremos a conspirata por forma que ela revista todas as aparências de séria, sem todavia deixar d’abexigar-se por dentro, com todas as inofensividades de jocosa. Eu tenho lá em casa um revólver de níquel, muito lindo, e que é por sinal de cautchuc, onde, nos meus intervalos de facínora, uso guardar picado de Kentuky.
Se acordarmos em intrujar a Europa com a comediazinha de onde V. M. há-de sair ovante e heroicizado, pode combinar-se a coisa para os começos do Inverno, uma noite ao acabar do teatro… Eu ponho um estalo de entrudo no gatilho da arma; V. M. mete na boca um zagalote; e quando, sob um jorro eléctrico, puser o pé no estribo da carruagem, eu do lado, pif! Páf! E deito a fugir, enquanto V. M. cai nos braços dos seus oficiais, não sem primeiro entornar sobre a camisa um frasquinho de tinta carmesim. Atenta a cor da tinta, e o facto de V. M. cuspir a bala no delíquo, os médicos não se recusarão, creio eu, a jurar sobre os Evangelhos, que V. M. foi ferido… Entanto, neste tão fácil plano, só um temor me alanceia: Com a bravura que todos lhe conhecem, V. M. é capaz de morrer de susto, mesmo tendo a certeza de não ter morrido, de tiro». In Os Gatos, 31 d’Agosto de 1889.

Em 19 de Outubro, pelas 11 horas e 5 minutos da manhã, morte de S. M. o rei Luís I, no palácio de Cascais. Desde muito se previa desfecho trágico à enfermidade do pobre agonizante, cujos últimos meses foram um martírio cruel de todas as horas, quer latejando nas garras da tortura física, quer nas da intriga palaciana, de sobejo por ele adivinhada através das consolações ambíguas dos fâmulos, aborrecidos já de tantas noites perdidas ao derredor da sua paralisia. A doença do rei foi uma coisa obscura para todos, e acerca dela mil contraditórias versões, vieram correndo as folhas dos periódicos, versões, que uns atenuavam, e exageravam outros, conforme o interesse partidário ou pessoal ligado à conservação ou aniquilação do soberano». In Fialho de Almeida, Carta a D. Luís sobre as Vantagens de ser Assassinado, Assírio Alvim, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-37-1441-8.

Cortesia de Assírio Alvim/JDACT