domingo, 23 de fevereiro de 2014

O Livro Negro do Cristianismo. Jacopo Fo. Sérgio Tomat. Laura Malucelli. «Mas por que embarcamos em tal aventura? Decerto, não por um anticlericalismo doentio. Hoje, até mesmo no clero inaugurou-se um debate muito fértil sobre a pesquisa histórica do percurso das religiões»

Cortesia de wikipedia

«Acho que, em parte, devemos também ao cristianismo o facto de hoje o mundo parecer menos desumano, sádico e violento do que no passado. Por dois mil anos, milhões de crentes tentaram de todas as maneiras testemunhar a palavra de paz e amor que Jesus pregava. Viam-se crentes nas cabeceiras dos doentes, recolhendo órfãos pelas ruas, curando os feridos depois das batalhas e saques. Havia cristãos, como São Francisco, que davam casa e conforto aos que eram devorados pela lepra e comida a quem morria de fome. E muitos como ele atravessaram as linhas de frente das batalhas para promover a paz entre os exércitos. Existiam muitos fiéis que socorriam os sobreviventes das inundações, dos terremotos, das fomes. Havia ainda cristãos que tentavam impor um limite à brutalidade contra os escravos e servos da gleba oprimidos pelos possessores. Existiram cristãos que se expuseram abertamente a fim de obter a graça para um inocente condenado sem provas, apenas por fanatismo religioso. Viram-se sacerdotes que construíram comunidades de índios e morreram com eles quando os conquistadores católicos decidiram que se agrupar em comunidades igualitárias e não pagar impostos constituía um crime contra Deus e a Coroa. Existiram sacerdotes que fundaram cooperativas e escolas para trabalhadores, que organizaram caixas de assistência mútua e ajudaram judeus e ciganos perseguidos a fugir... Mas essas pessoas, que por dois milénios contribuíram enormemente para melhorar a condição humana e civil dos mais fracos, raramente faziam parte dos vértices da Igreja.
Como aconteceu com todas as religiões do mundo que se tornaram cultos do Estado, os centros de poder das principais igrejas cristãs foram conquistados por indivíduos inescrupulosos e maliciosos, dispostos a usar a fé e o misticismo com o único objectivo de obter riqueza e autoridade. É claro que não se pode generalizar: existiram homens religiosos com grandes incumbências na esfera eclesiástica, que agiram com justiça e notável honestidade, e que sobretudo eram partidários, colocando em risco até mesmo a própria vida, do direito à dignidade e à sobrevivência dos pobres, golpeando, com palavras e actos concretos, os ricos bem nutridos e poderosos, inimigos de Cristo e dos homens (de uma homilia de Santo Ambrósio). Mas também é verdade que, por séculos, os papas continuaram vendendo os cargos religiosos a quem oferecia mais, e para ser ordenado bispo bastava pagar, não era necessário nem ser padre. Por dinheiro, Júlio II consagrou cardeal um rapazinho de 16 anos. Assim, no final das contas, muitos enganadores conseguiram até chegar a ser eleitos papas e macularam suas vidas com crimes horrendos.
O papa Woityla pediu perdão a Deus pelos pecados cometidos no passado por aqueles que representavam a ou pertenciam à Igreja. Mas, por maior que seja a lista dos actos nefastos cometidos, não podemos pretender que ela seja exaustiva. Então, demo-nos o trabalho de reunir o maior número de documentos que produzam uma ideia menos vaga do pecado que maculou a Igreja. Ao realizar esta pesquisa, deparamo-nos com um quadro de traços chocantes, povoado com um número inacreditável de episódios por vezes grotescos, mas sempre trágicos. As histórias que contaremos não se encontram em todos os livros. Ao contrário, os textos que narram esses factos (salvo raras exceções) foram colocados no limbo por especialistas. Mas por que embarcamos em tal aventura? Decerto, não por um anticlericalismo doentio. Hoje, até mesmo no clero inaugurou-se um debate muito fértil sobre a pesquisa histórica do percurso das religiões. Em toda a parte, nascem grupos de fiéis que tentam pôr em prática a palavra de Jesus e constroem solidariedade, liberdade, paz, superando obstáculos que ainda se interpõem à criação de um mundo onde a vida anterior à morte também seja digna de ser vivida. Mas, para que essa renovação seja profícua, é indispensável mergulhar profundamente no clima histórico, político e religioso que determinou o sacrifício de tantos mártires, vítimas da parte corrupta e autoritária do clero, muitas vezes com o auxílio dos grupos no poder.
Aquela consciência e aquela cultura, capazes de impedir que tais horrores se repitam, só podem ser construídas por meio da análise e do discernimento da natureza e gravidade dos abusos. Este livro é dedicado a todos os cristãos e aos homens de boa vontade das outras crenças. Também é dedicado aos ateus, que, exactamente por não acreditarem, têm a obrigação moral de possuir um profundo senso religioso da vida.

Jesus amava as mulheres
Jesus pregava o amor, a fraternidade e a piedade numa época em que esses sentimentos muitas vezes eram considerados infames sinais de fraqueza. Os Evangelhos contam-nos que, dentre seus mais estimados seguidores, na primeira fila estavam as mulheres. Os evangelistas também narram como Jesus desprezava a riqueza e condenava veementemente aqueles que tentavam fazer da fé uma mercadoria. Esta filosofia rapidamente colocou os cristãos contra a cultura e os poderosos da época, e as perseguições logo começaram. Mas apenas três séculos após a crucificação do Messias, o cristianismo se tornou a religião oficial do Império Romano, o que significa que nenhum súbdito podia professar outra crença, sob pena de cruel perseguição e, muitas vezes, o patíbulo. Como é possível que o mesmo Império que crucificara Jesus tenha decidido que o cristianismo seria a religião do Estado apenas trezentos anos depois? É um salto abissal. Para entender isso, é preciso analisar algumas características do Império Romano». In Jacopo Fo, Sérgio Tomat, Laura Malucelli, Il Libro nero del cristianesimo, O Livro Negro do Cristianismo, Itália, 2000, 2005, Ediouro, Rio de Janeiro, Brasil, 2007, ISBN 85-000-1964-6.

Cortesia de Ediouro/JDACT