segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Identidade e política. A prostituição e o reconhecimento de um ‘métier’ no Brasil. Soraya Silveira Simões. «… a população da cidade prestou uma anti homenagem à nova sede do governo municipal, apelidando-o de ‘Piranhão’, uma explícita alusão à “alcunha popular de prostituta” e à menção que faz à voracidade carnívora do peixe amazónico»

Cortesia de wikipedia

A prostituição e a cidade: problemas públicos e identidade social
«(…) Tal medida prenunciava ser o Mangue o lugar ideal para a localização do meretrício carioca, contribuindo para a definição dos espaços morais da cidade e, pela óptica higienista de então, também para o controle da sífilis e de outras doenças venéreas que assombravam a vida da população no início do século XX. Junto a isso, a grande mobilidade dos habitantes desta área era um dos distintivos que davam à Cidade Nova o caráter de área natural do baixo meretrício no Rio de Janeiro. Entretanto, o inexorável processo da expansão urbana pouco a pouco confinou e reduziu os seus domínios. Em 1945, a construção da Avenida Presidente Vargas pôs abaixo cerca de quinhentos edifícios da região, entre eles quatro igrejas, um mercado, a sede da prefeitura e muitas casas onde funcionavam os bordéis, espalhando, entre os moradores da cidade, o medo de que a prostituição proliferasse para outros bairros. Em 1954, iniciou-se a experiência conhecida como República do Mangue, termo cunhado pelos policiais da Delegacia de Costumes e Diversões (DCD) com o objectivo de fichar as prostitutas daquela área para que fossem exercidos simultaneamente os controles médico e policial. Em 1967, a visita da rainha Elizabeth II e de sua comitiva tornaria o casario parcialmente invisível para aqueles que cruzassem a Avenida Presidente Vargas.
A ordem dos militares era esconder o Mangue com tapumes e, com isto, traçar, finalmente, os limites da zona. Em 1970, o Jornal do Brasil chegou a anunciar o fim do Mangue. Mais de trinta casas estavam sendo desapropriadas e outras tantas deveriam passar pelo mesmo processo, pois, desde o início, a década de 1970 seria marcada pelas obras de construção do metropolitano e do Centro Administrativo São Sebastião (CASS), sede da Prefeitura do Rio de Janeiro (a população da cidade prestou uma anti homenagem à nova sede do governo municipal, apelidando-o de Piranhão, uma explícita alusão à alcunha popular de prostituta e à menção que faz à voracidade carnívora do peixe amazónico; na cidade, todos conhecem a sede da prefeitura pelo nome de Piranhão, e mesmo os seus funcionários se referem ao local de trabalho utilizando este nome; mais recentemente, um prédio anexo foi construído e, novamente, a população lembrou a antiga área dos bordéis, dando-lhe a alcunha de cafetão). Com as obras, a área abrangida pelo CASS não mais deixava espaço para um novo deslocamento das prostitutas. Havia, porém, em um pequeno trecho fronteiriço entre a Cidade Nova e o bairro do Estácio, uma travessa com casas, próxima ao sítio reurbanizado e à estação de metro, onde os bordéis seriam reinstalados, pela última vez naquele bairro, em 1979. Em seu pórtico lia-se Vila Mimosa. E a vila, anteriormente ocupada por famílias, viria acolher a escória, os últimos habitantes de uma área já totalmente desmantelada pela renovação urbana. Nas casas da Vila Mimosa, prostitutas e cafetinas preservariam seus negócios e um estilo de gerir a prostituição, não sem sofrerem muitas novas ameaças. Porém, no decorrer desse social drama, transformariam o lugar e suas actividades em um símbolo de resistência da Zona do Mangue e do direito à cidade.
Os estudos de ecologia urbana desenvolvidos pelos sociólogos de Chicago buscaram compreender a cidade e seus problemas através da análise dos processos de expansão urbana. Num artigo de 1925, Ernest Burgess ilustrou o zoneamento da cidade e seu processo de expansão com a representação de círculos concêntricos, mostrando com isso os sucessivos processos da expansão. Assim, em Chicago a prostituição se situava na zona de Loop, também chamada Zona Central de Comércio; na zona de transição, ou de deterioração e na zona residencial. Transpondo o seu esquema para a cidade do Rio de Janeiro, vemos que aqui o mesmo ocorria: no centro de comércio, onde se situam as praças Tiradentes e Campo de Santana, e em cujo prolongamento também se encontra a praça Mauá, junto ao cais do porto, o cenário é marcado pela presença das prostitutas de rua, que fazem o trottoir e frequentam bares, clubes e cinemas cuja programação se destina à exibição de filmes ou espectáculos eróticos. A prostituição de bordel, também chamada prostituição localizada, se concentra na zona de transição. Nesta podemos classificar a Vila Mimosa, último reduto da prostituição na região central do Rio, e que, devido a renovação urbana, foi reinventada em um bairro contíguo pelos seus antigos proprietários. Um tipo de prostituição mais discreta, pois confinada aos apartamentos e sustentada por um público de maior poder aquisitivo. Ficaria reservada, por fim, às áreas residenciais da cidade. Nesta modalidade, o bairro de Copacabana se sobressai na geografia moral carioca». In Soraya Silveira Simões, Identidade e política. A prostituição e o reconhecimento de um ‘métier’ no Brasil, Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-UFSCar, v.2, n.1, 2010.

Cortesia de RAntropologia/JDACT