domingo, 2 de fevereiro de 2014

Geraldo Geraldes. “O Sem-Pavor”. «… razoável conhecimento da língua árabe e não tendo nunca sido resgatado, terá possivelmente ingressado, na condição de escravo, nas fileiras do exército de algum comandante militar, uma experiência que lhe terá valido a aprendizagem de muitos dos seus conhecimentos guerreiros»

Cortesia de wikipedia

Perseguindo sombras
«Não é fácil traçar, mesmo que de forma muito sumária, o percurso biográfico do célebre Geraldo Geraldes, O Sem-Pavor. Apesar de se encontrar referido em diversas fontes narrativas coevas, tanto cristãs quanto muçulmanas, as informações disponíveis acerca desta personagem são extremamente lacónicas, por vezes confusas e frequentemente omissas relativamente a muitos aspectos da sua vida, o que certamente contribuiu, por um lado, para alimentar a sua faceta lendária, mas, ao mesmo tempo, para o rodear de uma quase impenetrável aura de dúvida e de controvérsia. Reconstituir a sua biografia é, por isso, um exercício que constantemente resvala para o plano das conjecturas e das hipóteses. E as primeiras dificuldades surgem-nos assim que procuramos conhecer as suas origens e os primeiros anos de vida, questões relativamente às quais as crónicas são totalmente silenciosas. Se bem que muitas outras teorias tenham já sido equacionadas, talvez a hipótese mais verosímil seja a que defende Armando Sousa Pereira, autor do mais recente e um dos mais empolgantes estudos sobre esta figura, segundo a qual Geraldo terá nascido em meados do século XII, talvez entre as décadas de 1130-1140, isto é, numa altura em que governava já Afonso Henriques, em território do ainda jovem reino português. Esta é uma hipótese assente no facto de algumas fontes muçulmanas o apelidarem, aliás, tal como o fazem relativamente a Afonso Henriques, de galego, uma designação que não remete necessariamente para o território da Galiza, mas sim, de uma forma vaga e imprecisa, para os vastos territórios situados a norte do Tejo. Era dessas regiões que partiam as grandes expedições depredatórias lançadas pelos portugueses contra o Sul muçulmano e, simultaneamente, era para aí que confluíam os exércitos do Islão durante o mesmo tipo de acções ofensivas, tão características da guerra na Idade Média e, em particular, do período da Reconquista.
Estas manobras de desgaste destinadas a privar o inimigo dos seus recursos materiais eram praticadas por ambos os lados em conflito e tanto perseguiam objectivos militares, como económicos. Com efeito, existia uma verdadeira economia de guerra assente no saque, na pilhagem e, acima de tudo, na obtenção de cativos, sem dúvida uma das suas principais fontes de rendimento. Vendê-los como escravos, aproveitar a sua mão-de-obra ou negociar a sua libertação mediante o pagamento de um resgate ou através de uma troca de prisioneiros era seguramente mais rentável que, pura e simplesmente, matá-los. É precisamente neste quadro de constantes razias e acções de pilhagem que, ainda segundo aquele autor, talvez encontremos o motivo da passagem de Geraldo do Norte cristão para o Sul muçulmano. Não é, pois, difícil imaginá-lo feito cativo, talvez ainda em criança, como era comum, durante uma das incursões como a que, em 1144, levou as hostes almorávidas quase até às portas de Coimbra, ou a que, onze anos depois, conduziu as forças almóadas desde Sevilha até junto do castelo beirão de Trancoso.
Mais tarde, já com um razoável conhecimento da língua árabe e não tendo nunca sido resgatado, terá possivelmente ingressado, na condição de escravo, nas fileiras do exército de algum comandante militar, uma experiência que lhe terá valido a aprendizagem de muitos dos seus conhecimentos guerreiros, mas também das tácticas dos exércitos muçulmanos e das suas principais características, dos seus pontos fortes e principais fraquezas, uma hipótese que nos parece fazer ainda mais sentido se observada à luz das inúmeras vezes que as crónicas muçulmanas o apelidam de traidor. As interrogações avolumam-se quando tentamos perceber os contornos dessa alegada traição, isto é, da sua desvinculação a esta realidade. Terá Geraldo logrado escapar dos seus captores, ou porventura conseguido obter a liberdade graças a uma conversão, real ou fictícia, ao Islão? Ou teria sido resgatado no âmbito de uma operação militar em tudo semelhante àquela que, anos antes, o terá conduzido ao cativeiro? Não o sabemos e muito menos conhecemos a cronologia ou os palcos de todos estes episódios. Ou seja, até ao ano de 1162 todo o percurso daquele que viria a ser conhecido como O Sem-Pavor não passa de mera conjectura. Verosímil, mas ainda assim uma sucessão de hipóteses praticamente impossíveis de comprovar. Porém, a partir daquela data, embora sem grande nitidez, começam a surgir algumas pistas, as primeiras das quais são as que dão conta, nesse mesmo ano, da conquista de Beja.

O assalto a Beja
Baptizada Pax Julia pelos romanos, a cidade parece ter tombado, segundo as fontes cristãs e muçulmanas, na noite de 30 de Novembro para 1 de Dezembro de 1162, na sequência de uma expedição levada a cabo por forças oriundas de Coimbra. Composta na sua maioria por cavaleiros-vilãos, ou seja, não-nobres, e comandada por Fernão Gonçalves, contou ainda com o importante contributo de contingentes mobilizados e/ou reunidos em Santarém, localidade onde a coluna de marcha terá feito uma pausa mais demorada antes de cruzar o Tejo, que então constituía a fronteira, e de avançar pelas planícies alentejanas». In Miguel Gomes Martins, Guerreiros Medievais Portugueses, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-626-486-4.

Cortesia Esfera dos Livros/JDACT