domingo, 9 de fevereiro de 2014

O Comércio Negreiro. Escravos e Traficantes no império português. Séculos XV a XIX Arlindo M. Caldeira. «Os portugueses aproveitaram a rede inter-regional de trocas e conseguiam, no Benim, os escravos que depois vendiam aos ‘mercadores akan’ em troca do ambicionado ouro. Assumiam, nesse caso concreto, o papel de intermediários…»

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Tráfico e Tráficos. Os navios negreiros não param de passar
«(…) A ideia de que foram os europeus que introduziram no continente africano a escravatura e o tráfico de escravos, que passa ainda nalguns discursos mais ideológicos, não tem, como se sabe, qualquer fundamento. Antes da chegada dos europeus já a escravatura estava presente em todas as sociedades africanas e, quanto ao início do tráfico com o exterior, vários séculos antes de começar o tráfico atlântico já os comerciantes árabes, como veremos a seguir, transportavam escravos africanos em direção à bacia mediterrânica e à Península Arábica. O que não impede que se reconheça a repercussão que o comércio negreiro transatlântico teve nos circuitos internos preexistentes e no interior das sociedades de origem. Outro lugar-comum, o de que o tráfico, no período transatlântico, era apenas uma iniciativa e um negócio de europeus, de que os africanos, todos os africanos, eram vítimas passivas, não tem igualmente cabimento. Não foi sob coacção que as elites locais participaram no tráfico, nem tal seria possível, mas de forma voluntária, consciente, sabendo usar em proveito próprio os mecanismos de mercado e auferindo lucros significativos.
Ainda hoje, em textos de divulgação, a ideia da responsabilização exclusiva dos brancos é levada tão longe que se fala comummente não em comércio mas em captura, dos escravos, no sentido de captura directa e violenta pelos europeus, sem sequer se ter em conta que período está a ser considerado. É certo que os portugueses, quando chegaram à África subsariana, usaram ainda, como faziam em Marrocos, raids ofensivos para a captura de prisioneiros, por vezes mulheres e crianças, depois vendidos como escravos. Desde meados do século XV tais práticas foram substituídas, salvo situações excepcionais, por relações de comércio pacíficas com os comerciantes e as autoridades locais. Isso só foi possível porque, como já dissemos, a escravatura estava instalada na África subsaríana antes do contacto directo com os europeus, tratando-se de uma instituição não só conhecida como largamente disseminada. Segundo o historiador norte-americano John Thornton, essa difusão e o enraizamento da escravidão nas estruturas legais e institucionais das sociedades africanas tinham a ver com o facto de, não existindo posse privada da terra, os escravos serem a única forma de propriedade privada reconhecida nas leis africanas que produzia rendimentos, pois podiam ser herdados e gerar riqueza. Não admira, por isso, que a posse de escravos, além de proporcionar força de trabalho, fosse também uma fonte de poder e de prestígio.
Embora muito mal documentada, sabemos, ainda assim, que a escravidão tradicional africana tinha características específicas, diferentes das que virá a ter, por exemplo, o escravismo na economia de plantação atlântica. Parece seguro que em África, de uma forma geral, os escravos eram melhor tratados e estavam melhor integrados na sociedade, o que não impedia que lhes fossem atribuídas todo o tipo de tarefas, incluindo as mais humilhantes, e que pudessem ser também vítimas de violência. Uma das diferenças principais talvez fosse o facto de, pelo menos em certos casos, a situação de escravo não impedir a ascensão social, podendo alguns desempenhar importantes funções militares e até políticas. Por exemplo, no reino do Ndongo (Angola), antes da entrada dos portugueses, o cargo de tandala, a segunda figura do Estado, uma espécie de vice-rei, era ocupado, em princípio, por um escravo.
Esses escravos, muitos deles presas de guerra, eram também já objecto de compra e venda, existindo um desenvolvido comércio de mercadoria humana, o que pode explicar a facilidade com que os europeus encontraram interlocutores (chefes políticos, funcionários régios, mercadores...) quando quiseram comprar escravos na costa ocidental africana. Nalguns casos, existiam já mercados regionais e, à sua chegada no século XV, os portugueses, os primeiros a aparecer, mais não fizeram que integrar-se nessas redes comerciais preexistentes, adaptando-lhes os meios técnicos de que dispunham, nomeadamente em termos de transportes marítimos. O historiador togolês Joseph Wen-Mewuda, num artigo significativamente intitulado Africains et Portugais: tous des négriers, (Africanos e Portugueses, ambos negreiros), mostra como as relações entre portugueses e africanos podiam ser muito mais complexas do que uma visão simplista quer fazer crer, podendo mesmo os africanos ser simultaneamente fornecedores e consumidores de escravos. É o que acontece na região da Mina. Os portugueses aproveitaram a rede inter-regional de trocas e conseguiam, no Benim, os escravos que depois vendiam aos mercadores akan em troca do ambicionado ouro. Assumiam, nesse caso concreto, o papel de intermediários, inserindo-se num tipo de tráfico que era já anterior à sua chegada». In Arlindo Manuel Caldeira, Escravos e Traficantes no império português, O Comércio Negreiro no Atlântico durante os séculos XV a XIX, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-626-478-9.

Cortesia ELivros/JDACT