segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Para a Ficção. Textos Críticos. Maria Madalena das páginas da Bíblia. Organização de Salma Ferraz. «A primeira, Maria, mãe dele, acompanhou o nascimento carnal; a segunda, Madalena, o nascimento espiritual, a ressurreição dentre os mortos. Se por Eva, num jardim ocorreram a perdição e a morte, por Madalena, também num jardim, ocorreram o resgate e glorificação da mulher»

Cortesia de verasabino e jdact

Maria Magdalena. A antiodisseia da discípula amada
«(…) Madalena era discípula de Jesus e o seguia com seus bens, seu corpo e sua alma. Foi testemunha dos dois piores momentos da vida dele: a Paixão e a Ressurreição. Quando chama Jesus de Mestre, legitimamente se auto-intitula discípula. Quando Jesus incumbe Madalena de anunciar a ressurreição, Ele confirma o Apostolado e Discipulado dela. Foi Hipólito, bispo heresiólogo de Roma, quem outorgou à Madalena, no século III, o título de Apostola Apostolorum, facto este posteriormente olvidado pela Igreja. O facto de Madalena ter sido incumbida directamente por Jesus de anunciar a sua ressurreição a transforma, de certo modo, na fundadora do Cristianismo, como já apontou Renan em Vida de Jesus. Seria mais correcto dizer que, ao anunciar a ressurreição, Madalena lança a pedra fundamental do Cristianismo. Jean-Yves Leloup (2004) elabora, no final de seu Romance de Maria Madalena, uma mulher incomparável, 12 interessantes teses sobre Madalena. Na sua sétima tese, considera Madalena como aquela que acompanhara a agonia e a morte de Jesus, mas, principalmente, fora ela a parteira do novo nascimento de Jesus, tornando-se, assim, uma segunda mãe para Ele. A primeira, Maria, mãe dele, acompanhou o nascimento carnal; a segunda, Madalena, o nascimento espiritual, a ressurreição dentre os mortos. Também podemos estabelecer outra relação figurativa que já foi apontada na Introdução do Sermão anónimo francês pertencente ao século XVII, encontrado por Rainer Maria Rilke (2000) num antiquário parisiense, em 1911, intitulado L’ amor de Madaleine: se por Eva, em um jardim ocorreram a perdição e a morte, por Madalena, também em um jardim, ocorreram o resgate e glorificação da mulher. A primeira mulher foi falha e não passava de uma sombra da outra: Madalena. Se por uma mulher, Eva, entrou o pecado e coube a ela presenciar a queda do primeiro Adão, à outra mulher, Madalena, foi atribuído o privilégio de presenciar a morte e, principalmente, a ressurreição do segundo Adão, Jesus, este sim incorruptível e sem pecado. Essa mesma ideia já havia sido desenvolvida por Cirilo de Alexandria, que, em 444, afirmava que em Madalena todas as mulheres foram perdoadas da transgressão de Eva, porque Madalena testemunhara, antes de todos, a ressurreição. Em 630, Modestus, patriarca de Jerusalém, levantou a hipótese de que Madalena fora líder das discípulas de Jesus e que morrera martirizada. Santo Agostinho também distingue Madalena como uma das mulheres mais importantes dos Evangelhos.
Jacinto Freitas Faria (2004) enumera, na sua obra O outro Pedro e a outra Madalena segundo os Apócrifos, suas 13 teses sobre Madalena dos Evangelhos Canônicos:
  • Apóstola de Jesus;
  • Mulher possessa de sete demónios;
  • Mulher que sustenta financeiramente a Jesus e seus discípulos;
  • Mulher sem laços familiares;
  • Testemunha da morte;
  • Testemunha do sepultamento de Jesus;
  • Discípula amada de Jesus;
  • Testemunha da ressurreição e anunciadora deste facto aos demais discípulos;
  • Madalena quis tocar o corpo de Jesus;
  • Temeu que não acreditassem em sua mensagem;
  • Foi a primeira pessoa que acreditou que Jesus havia ressuscitado;
  • Mulher de oração;
  • Madalena não era prostituta.
Todos os evangelistas dão importância crucial à Madalena na vida do Homem de Nazaré, uma vez que ela é citada 12 vezes a mais que Maria, mãe de Jesus. Supomos que Madalena fosse tão conhecida naquela época, praticamente uma celebridade, que era impossível não se fazer referência a ela, por isso há uma quádrupla atestação dos evangelistas sobre a actuação dela. Mas as funções de discípula e apóstola, funções primordiais de Madalena, foram ofuscadas pela fusão e confusão em torno de sua tríplice face, criando-se uma espécie de contínuo poético: a suposta pecadora que ungiu os pés de Jesus foi identificada com a mulher quase apedrejada por adultério, com a mesma que esteve aos pés da cruz e que preparou unguentos para a unção do corpo de Jesus no sepulcro. Tudo isso passou a fazer parte do que denominamos tradição madalénica, confirmada pela pintura e pelos filmes da vida de Cristo. Bernardino de Sena, num sermão latino escrito e pregado na Idade Média, aponta os topos madalénicos da designada Magna peccatrix: busca de prazer, beijos/luxúria, penteado/vaidade, olhar lascivo, caminhar suspeito, tentação, beleza do corpo, abundância de bens/riqueza e muita liberdade. As pinturas da Idade Média e do Renascimento mantêm a tradição madalénica ao retratá-la com longos cabelos, na maioria das vezes, loiros ou ruivos, vaso de perfume e manto vermelho. Na Idade Média, Madalena torna-se, a partir desses topos, padroeira dos perfumistas, dos cabeleireiros, dos fabricadores de luvas e leques e das meretrizes arrependidas.
Cabe aqui relatarmos um caso ocorrido dentro da Igreja Católica nos últimos 50 anos. Segundo a reportagem da Folha de São Paulo publicada em 1996, cerca de 50 irlandesas, apodadas de filhas de Maria Madalena, (ordem de freiras irlandesas que tinha conventos em toda a Irlanda), passaram os últimos 40 anos de suas vidas lavando seus pecados nas chamadas lavandarias de Madalena. Agora correm o risco de viverem mendigando nas ruas de Dublin. Nas décadas de 1940 e 1950, milhares de adolescentes que não se comportavam dentro dos padrões puritanos da sociedade foram condenadas a viverem isoladas em regime de cativeiro dentro das lavandarias desses conventos, lavando roupa o dia inteiro durante o ano todo para expiação dos seus pecados». In Salma Ferraz, organização, Maria Madalena das páginas da Bíblia para a Ficção, Textos Críticos, Eduem, UEM, Maringá, Brasil, 2011, ISBN 978-85-7628-334-8

Cortesia de Eduem/JDACT