quinta-feira, 30 de junho de 2016

A Feiticeira de Florença. Salman Rushdie. «Ele podia sonhar em sete línguas: italiano, espanhol, árabe, persa, russo, inglês e português. Pegava línguas do mesmo jeito que a maioria dos marinheiros pegava doenças; línguas eram a sua gonorreia, sua sífilis…»

jdact e wikipedia

«(…) Para além da torre de dentes, ficava um grande poço e acima dele uma massa de uma incompreensivelmente complexa maquinaria de água que servia ao palácio de muitas cúpulas sobre o monte. Sem água não somos nada, o viajante pensou. Até mesmo o imperador, privado de água, logo se transformaria em pó. A água é o verdadeiro monarca e nós todos somos seus escravos. Uma vez, em sua terra, em Florença, havia encontrado um homem que sabia fazer a água desaparecer. O mágico enchia uma jarra até à boca, murmurava palavras mágicas, virava a jarra e, em vez de líquido, dela saía pano, uma torrente de lenços de seda coloridos. Era um truque, claro, e antes do fim do dia o viajante havia arrancado do sujeito o seu segredo e o escondera entre seus próprios mistérios. Ele era um homem de muitos segredos, mas apenas um apropriado a um rei. A estrada para a muralha da cidade subia íngreme pela encosta e ao subir com ela o viajante viu o tamanho do lugar aonde havia chegado. Era evidentemente uma das grandes cidades do mundo, maior, parecia ao seu olhar, do que Florença, Veneza ou Roma, maior do que qualquer cidade que o viajante já havia visto. Ele visitara Londres uma vez; também ela uma metrópole menor que aquela. Com o fim da luz, a cidade pareceu crescer. Densos bairros amontoavam-se fora das muralhas, muezins cantavam de seus minaretes e à distância ele podia ver as luzes de grandes propriedades. Fogos começaram a se acender na penumbra, como alertas. Do bojo negro do céu veio a resposta do fogo das estrelas. Como se a terra e o céu fossem exércitos se preparando para a batalha, pensou. Como se seus acampamentos se aquietassem à noite e esperassem a vinda da guerra do dia. E em toda aquela multiplicidade de ruas e em todas aquelas casas de poderosos, além, nas planícies, não havia um homem que tivesse ouvido seu nome, nem um único que pudesse acreditar de imediato na história que tinha para contar. Mas tinha de contar. Atravessara o mundo para isso, e havia de contar. Andava a passos largos e atraía muitos olhares curiosos por conta do cabelo amarelo, além de sua altura, o cabelo loiro comprido e inegavelmente sujo esvoaçando em torno do rosto como a água dourada do lago. O caminho subia, passava diante da torre de presas na direcção de um portal de pedra com dois elefantes em baixo relevo, um na frente do outro. Por esse portão, que estava aberto, vinham os ruídos de seres humanos brincando, comendo, bebendo, farreando. Havia soldados a postos no portão de Hatyapul, mas em atitude relaxada. As verdadeiras barreiras estavam adiante. Aquele era um local público, um local para reuniões, compras e prazer. Homens apressados ultrapassaram o viajante, levados por fomes e sedes. De ambos os lados da rua calçada entre o portão externo e o interno havia hospedarias, estalagens, barracas de comida e mascates de todo tipo. Ali se dava o negócio eterno de comprar e ser comprado. Roupas, utensílios, bugigangas, armas, rum. O mercado principal ficava além do portão menor, do sul. Os moradores da cidade faziam ali suas compras e evitavam este lugar, que era para recém-chegados ignorantes que não sabiam o preço real das coisas. Aquele era o mercado dos trapaceiros, o mercado dos ladrões, ruidoso, extorsivo, desprezível. Mas viajantes cansados, ignorantes do mapa da cidade e relutantes, de qualquer forma, em caminhar até a muralha externa para o mercado maior e mais justo, não tinham opção senão tratar com os mercadores do portão do elefante. Suas necessidades eram urgentes e simples.
Galinhas vivas, barulhentas de medo, penduradas de cabeça para baixo, agitadas, os pés amarrados juntos, à espera da panela. Para vegetarianos havia outros caldeirões, mais silenciosos: vegetais não gritam. E eram vozes femininas que o viajante ouvia no vento, ululando, provocando, instigando, rindo para homens invisíveis? Eram mulheres que ele farejava na aragem da noite? De qualquer forma, era tarde demais para procurar o imperador hoje. O viajante tinha dinheiro no bolso e fizera uma viagem demorada e extensa. Seu modo de agir era este: chegar a seu objectivo por vias indirectas, com muitos desvios e divagações. Desde que aportara em Surat tinha passado por Burhanpur, Handia, Sironj, Narwar, Gwalior e Dholpur até Agra, e de Agra para ali, a nova capital. Agora queria a cama mais confortável que pudesse encontrar e uma mulher, de preferência uma sem bigode, e, por fim, a quantidade de esquecimento, de fuga de si mesmo, que nunca se pode encontrar nos braços de uma mulher, mas apenas numa boa bebida forte. Depois, com seus desejos satisfeitos, ele dormiu no perfumoso bordel, roncando, prazeroso, ao lado de uma prostituta insone, e sonhou. Ele podia sonhar em sete línguas: italiano, espanhol, árabe, persa, russo, inglês e português. Pegava línguas do mesmo jeito que a maioria dos marinheiros pegava doenças; línguas eram a sua gonorreia, sua sífilis, seu escorbuto, sua febre, sua peste. Assim que adormeceu, metade do mundo começou a tagarelar em sua cabeça, contando incríveis histórias de viajantes. Nesse mundo semi-descoberto, cada novo dia trazia notícias de novos encantamentos. A visionária, reveladora poesia dos sonhos do quotidiano ainda não havia sido esmagada pela estreita e prosaica realidade. Ele era um contador de histórias, tinha sido atraído para fora de sua porta por histórias de portentos, e por uma em particular, uma história que poderia fazer sua fortuna ou, talvez, custar-lhe a vida.
A bordo do navio pirata do milorde escocês, batizado de Scáthach em honra à deusa da guerra de Skye, uma nau cuja tripulação durante muitos anos roubara e pilhara alegremente para cima e para baixo do litoral da América espanhola, mas que actualmente estava a caminho da Índia em negócios de Estado, o lânguido clandestino de Florença evitara ser sumariamente lançado ao rio Branco do sul da África ao tirar uma cobra-d’água viva de dentro do ouvido de um perplexo contramestre, a qual jogara na água em seu lugar. Ele havia sido encontrado debaixo de um escaler do castelo de proa do navio, sete dias depois de a nau contornar o cabo Agulhas, ao pé do continente africano, usando um gibão e calça de malha cor de mostarda, enrolado numa grande capa de retalhos feita com losangos de couro de cores vivas como de arlequim, aninhado sobre uma pequena bolsa de tecido grosso, dormindo um sono profundo de muitos altos roncos, sem fazer nenhum esforço para se esconder. Ele parecia perfeitamente disposto a ser descoberto e incrivelmente confiante em sua capacidade de charme, persuasão e encanto. Afinal de contas, já o tinham levado bem longe. De facto, ele se revelou um bom mágico. Transformava moedas de ouro em fumaça e fumaça amarela de volta em ouro. Uma jarra de água doce virada de boca para baixo deixava cair uma torrente de lenços de seda. Ele multiplicava peixes e pães com dois passes de suas mãos elegantes, o que era uma blasfémia, claro, mas os marinheiros esfaimados o perdoaram com facilidade. Persignando-se depressa, para se garantir contra a possível ira de Cristo Jesus pela usurpação de seu posto por esse milagreiro moderno, engoliram o banquete inesperado, mesmo que teologicamente insalubre». In Salman Rushdie, A Feiticeira de Florença, Publicações dom Quixote, 2008, ISBN 978-972-203-692-4.

Cortesia de PdQuixote/JDACT