sexta-feira, 24 de junho de 2016

Rainha da Loucura. A. Borges. «… que esta Isabel casou com um meio-irmão do pai e, portanto, um homem que era mais ou menos seu tio. Juntos, tiveram uma filha, baptizada Isabel, aquela que era assim, neta do rei João por via paterna e legítima e bisneta do mesmo rei João por via materna e bastarda»

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Dona Isabel de Portugal. Rainha de Castela
«Em 1428, quando Isabel nasceu, ainda era rei seu avô, João I, que, por acaso, era também seu bisavô. A história não é fácil de perceber, nem especialmente lisonjeira para a imagem de João, mestre de Avis, o rei dito de Boa Memória, que, apoiado pelo povo e escoltado por Nuno Álvares Pereira, segurou a independência portuguesa perante as legítimas pretensões de Castela na crise (revolução?) de 1383-85 e deu início à segunda dinastia nacional, a de Avis. Vamos por partes: João casou com a inglesa Filipa de Lencastre. Dessa célebre união nasceu um conjunto de infantes cultos e audazes que ficariam celebrizados para a História sob a designação de a Ínclita Geração. Dela constavam, entre outros, Duarte, futuro rei de Portugal, o infante Henrique, Fernando, chamado o Infante Santo (??) pela sua trágica morte em África em favor dos interesses nacionais, e João, duque de Beja, sexto e penúltimo dos irmãos. Ora este João viria a ser pai da nossa menina Isabel, fazendo dela, portanto, neta legítima do rei João I. Esta parte é fácil; falta a outra.
Apesar do celebrado casamento com Filipa de Lencastre e da boa reputação de que sempre gozou, o facto é que o rei João não se furtou aos costumes da época e também teve a sua relação extraconjugal e os seus bastardos. A relação em questão deu-se com a senhora Inês Pires Esteves e dela nasceram dois filhos, um menino e uma menina. Ora, o rei casaria esse menino bastardo de nome Afonso com Beatriz Pereira de Alvim, filha única do seu condestável Nuno Álvares Pereira, dotando-os de terras e bens e dando origem à Casa de Bragança (que muito lá mais adiante na História se tornará na quarta e última dinastia da monarquia nacional). Pois bem: Afonso e Beatriz tiveram uma filha de nome Isabel e essa Isabel acabou por casar com João, o tal sexto e penúltimo irmão da Ínclita Geração e, portanto, sexto e penúltimo filho legítimo do rei João I.
Confusos? É natural. Digamos, em resumo, que esta Isabel casou com um meio-irmão do pai e, portanto, um homem que era mais ou menos seu tio. Juntos, tiveram uma filha, também baptizada Isabel, aquela com que começámos a nossa história e que era assim, portanto, neta do rei João por via paterna e legítima e bisneta do mesmo rei João por via materna e bastarda. Notável. A pequena Isabel cresceu, pois, na corte, embora sem privilégios especiais. O pai tinha bens, mas nunca poderia aspirar a ser rei, tantos infantes e duques tinha à frente na linha de sucessão. Era um ambiente dominado pela aura de poder daquela dinastia que, depois de assegurar a independência nacional, tinha já dado início à expansão, combatendo e triunfando no Norte de África e lançando as bases dum império ultramarino. Sobre toda a corte impendia ainda a devoção religiosa e o carisma do seu outro bisavô, Nuno Álvares Pereira, herói de guerra que, pelas suas proezas, fora recompensado com inúmeras riquezas e terras e que, no entanto, depois de se tornar um dos homens mais ricos de toda a Península Ibérica, preferira distribuir tudo por companheiros de armas e mendigos, entrando para o Convento do Carmo por ele mesmo mandado construir, esperando que, algures, o mundo o acabasse por esquecer.
Este bisavô morreu tinha Isabel três anos; o outro, que também era avô e rei, quando ela completara cinco. O rei Duarte subiu então ao trono e com ele chegaram à corte algumas caras novas, como o seu antigo escudeiro Rui Gomes Silva e respectivas filhas. Uma destas crianças seria depois entregue à mãe de Isabel para que viesse a tornar-se aia da pequena infanta. Chamava-se Beatriz, a menina em questão. Era ligeiramente mais velha do que Isabel, teria talvez sete anos, e tão bonita que, um dia, um pintor usá-la-á como modelo para um retrato da Virgem Maria. Isabel e Beatriz cresceriam, portanto, juntas, entre jogos, bordados e tertúlias, mas o seu destino não seria o mesmo. Eram ambas fidalgas, mas Beatriz era uma simples aia particularmente empenhada nas suas orações a São Francisco de Assis e a Nossa Senhora da Conceição; Isabel, ainda que por via ínvia, tinha sangue real nas veias e, um dia, deveria casar com um infante ou duque duma casa estrangeira. Esse dia chegou em 1447, já o rei Duarte havia morrido e subido ao trono o seu filho Afonso V. Mas Isabel não tinha à espera uma segunda figura como ela; o noivo era o próprio rei de Castela...
Juan II de Castilla não fazia planos de voltar a casar. Era um homem fraco de 42 anos, mais 23 do que a noiva que agora lhe arranjavam, tinha levado uma vida razoavelmente longa e com mais aborrecimentos do que contava. O trono caíra-lhe ao colo aos 27 meses de vida, quando o pai, Henrique III, morreu. O tio Fernando assegurou a regência enquanto crescia, mas, quando assumiu oficialmente funções, depressa se percebeu que não fora talhado para liderar. Era um homem afável, que gostava de cantar e dançar, aptidões pouco adequadas aos confrontos com a nobreza que o aguardavam. A partida de Fernando para assumir o trono de Aragão e o dócil carácter do rei deixaram a Álvaro Luna caminho aberto para se impor. Luna era um fidalgo que conhecia Juan desde criança; tinha sobre ele um ascendente, sabia disso e ia explorá-lo até onde lhe fosse permitido.
Promovido a ministro e favorito pessoal no afecto do rei, Álvaro Luna tornou-se, então, no verdadeiro governante de Castela. Fez alianças políticas com a pequena nobreza e o baixo clero, para combater as aspirações dos grandes fidalgos de Castela e dos infantes de Aragão, e arrastou para a guerra as tropas do rei, numa tentativa fracassada de reconquistar Granada aos mouros (há quem diga, aliás, que o falhanço se ficou a dever não tanto a questões bélicas, mas a uma carroça cheia de figos com que os muçulmanos, em momento oportuno, presentearam Luna, sendo que, dentro de cada figo, estaria uma moeda de ouro…). Especulações à parte, ao longo dos anos seguintes Luna seria sucessivamente nomeado condestável de Castela, conde de Santiesteban e grão-mestre da Ordem de Santiago. Por volta de 1445, a sua autoridade tinha-se tornado pouco menos do que absoluta». In Alexandre Borges, Histórias Secretas de Reis Portugueses, Casa das Estrelas, 2012, ISBN 978-972-46-2131-9.

Cortesia de CdasLetras/JDACT