terça-feira, 14 de junho de 2016

Galveias. José Luís Peixoto. «A coisa sem nome permaneceu sozinha na herdade do Cortiço, no centro da cratera. Ao longo desse dia, sexta-feira, não recebeu vistorias. O toque de finados, repetido durante a tarde, tirou essa ideia àqueles que, por insensibilidade momentânea…»

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«Escuta lá, de quem é que tu és filho? Sou o filho do Peixoto da serração e da Alzira Pulguinhas»

Janeiro de 1984
«(…) Está claro que não era. As palavras saíam-lhe da boca e ele sabia que não era. Lançou esse palpite sobretudo como expressão do espanto extraterrestre que ali se sentia. Poucas pessoas arriscavam sugestões. O doutor Matta Figueira, de fato, colete e gravata, acompanhado pelo Edmundo, em traje de tratar do jardim, botas de borracha, partilhava dessa cautela silenciosa. A coisa sem nome tinha caído no Cortiço. Os mais velhos lembravam-se dessa herdade já ter dado toda a espécie de cultivo. Naquela hora, estava coberta por um pasto verde, viçoso, próprio para ser apreciado. O caminho não custa: quem vá da vila ao monte da Torre, passa pelo campo da bola e encontra o Cortiço à esquerda, depois de passar pela Assomada e antes de chegar à Torre. Do outro lado da estrada, está a courela do Caeiro.
Era na courela que os perdais se refugiavam. Levantavam-se às vezes, aqui e mais além, num restolhar de penas. Como se quisessem desembaraçar-se de si próprios, aguentavam-se por dois ou três segundos errantes e voltavam logo a cair, vencidos pelo medo. Eram pardais que nunca tinham visto um ajuntamento daqueles. Os galveenses iam chegando em levas. Acercavam-se da cratera, avaliavam a forma da coisa sem nome, sentiam-lhe o calor e o cheiro, mas ignoravam-lhe o mistério. Muitos atravessavam os campos, iam de algum lado a algum lado. Outros juntavam-se em assembleia debaixo dos sobreiros. Às vezes, em ocasiões que passaram despercebidas, havia alguém a querer obrigar um cão a aproximar-se, a empurrá-lo ou a puxá-lo. Nunca conseguiam e acabavam por desistir. Os cães guardavam sempre mais força de vontade. Teriam sido capazes de virar-se contra os donos, não chegou a ser preciso. Ao longo do dia, entre a vila e a herdade do Cortiço, houve viúvas de todas as idades em ritmo de procissão e houve rapazes sem travões a acelerarem a fundo nas motas; houve carroças de mulas, onde os cachopos apanhavam boleias clandestinas, e houve burros arreados a levarem velhotes de pernas fracas e de ancas a dançar.
Nesse serão, os galveenses jantaram sopa de feijão com couve. A seguir, limparam a boca com uma peça de fruta e ficaram pensativos. Isto, claro, com a excepção daqueles que jantaram outra coisa, daqueles que não tinham fruta em casa e daqueles que estavam demasiado compenetrados em alguma tarefa para se distraírem com pensamentos. Uns deitaram-se mais cedo, outros deitaram-se mais tarde. A noite passou. Chegou a madrugada e, logo depois, chegou a manhã. Para muitos, despertar foi um alívio. Esse não foi o caso do ti Ramiro Chapa, que faleceu no posto de socorros ao toque da aurora.
A coisa sem nome permaneceu sozinha na herdade do Cortiço, no centro da cratera. Ao longo desse dia, sexta-feira, não recebeu vistorias. O toque de finados, repetido durante a tarde, tirou essa ideia àqueles que, por insensibilidade momentânea, colocaram a hipótese. Mas esteve também nas conversas na capela de São Pedro. Os homens do lado de fora, a aguentarem um frio que atravessava samarras; as mulheres lá dentro, em redor da presença deitada do defunto, embrulhadas em mantas que não as aqueciam, intoxicadas pelo cheiro a enxofre que, ali, se condensava com uma força que dava tonturas. Era como se o próprio homem, coitado, internado havia tanto tempo no posto de socorros, se tivesse transformado numa barra de enxofre. Foi só na manhã seguinte, depois do enterro, que chegaram novas visitas. Sem saberem como lidar com a coisa sem nome, sem compreendê-la, os mais desocupados e menos sensíveis de nariz regalaram-se a olhá-la. Então, exploradores, perceberam que podiam aproximar-se. O cheiro a enxofre lançava-se pelas narinas como pregos, mas o quente temperava a frieza daquela hora. Era uma dezena de homens com as palmas das mãos assentes sobre uma pedra. Nesse momento preciso, caiu a primeira gota. Logo a seguir, uma chuva mundial. Era o céu inteiro que chovia. Sem descanso, sem uma interrupção, noite e dia, exactamente com a mesma avidez, à bruta, choveu durante uma semana, sete dias seguidos. E todos se esqueceram da coisa sem nome, menos os cães». In José Luís Peixoto, Galveias, Quetzal Editores, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-722-179-8.

Cortesia de Quetzal/JDACT