segunda-feira, 27 de junho de 2016

Cruzadas, Cécile Morrisson. «… uma peregrinação de cunho militar decidida por um papa que concede a seus participantes privilégios temporais e espirituais e lhes determina o objectivo de libertar o Sepulcro de Cristo, em Jerusalém»

jdact e wikipedia

«O termo cruzada é raro e recente: não aparece no latim medieval antes da metade do século XIII e seu correspondente árabe (hurub assalibiyya = a guerra pela cruz) data somente de 1850. De facto, aos olhos dos orientais, as cruzadas permaneceram durante muito tempo como simples guerras iguais a tantas outras iniciadas pelos francos. Já estes, que eram antes de tudo peregrinos, se consideravam como soldados de Cristo e marcados pelo sinal da cruz (crucesignati, em italiano), sendo a partir desta última expressão que se formou, por volta da metade do século XIII, o termo cruzada (também do italiano cruciata). Os textos medievais em geral designam essas expedições como a viagem de Jerusalém ou o caminho do Santo Sepulcro (iter hierosolymitanum, via Sancti Sepulcri, em latim) e, já no começo do século XIII, quando o movimento se tornou mais regular, sob o nome de passagem (que podia ser a pequena passagem, a grande passagem ou a passagem geral). Subjacente a todas essas expressões se encontra a ideia da peregrinação: Joinville fala sobre a peregrinação da cruz. Ainda no século XIV, quando o Ocidente renuncia de facto, senão de direito, à reconquista de Jerusalém, as cruzadas são referidas pelo nome de viagem a ultramar. Entendemos aqui por cruzada, seguindo a orientação de H. E. Mayer e J. Richard, uma peregrinação de cunho militar decidida por um papa que concede a seus participantes privilégios temporais e espirituais e lhes determina o objectivo de libertar o Sepulcro de Cristo, em Jerusalém. É neste sentido que o termo foi compreendido pelos autores que escreveram sua história a partir do século XV mas o empregaram principalmente a partir do século XVII: em 1611, Bongars reuniu os principais textos latinos que se referiam a elas em seu livro Gesta Dei per francos, enquanto Maimbourg publicava sua História geral das cruzadas em 1682; ao mesmo tempo, pela metade desse século, a edição do Corpus dos historiadores bizantinos (chamada de Bizantina do Louvre) tornou conhecida no Ocidente a obra dos autores gregos da época das cruzadas. Esse esforço de publicação nem sempre foi explorado pelos estudiosos posteriores de maneira satisfatória. As cruzadas, talvez admiradas demais por Bongars, foram analisadas com paixão oposta por Th. Fuller (History of the Holy Wars [História das guerras santas], publicada entre 1639 e 1647) e por Voltaire, em seu Ensaio sobre os costumes (1756). O termo cruzada tornou-se nessa época um sinónimo de guerra santa, patrocinada pela Igreja Católica não importa por que motivo fosse, e, logo a seguir, de manifestação de fanatismo. O século XIX, com seu interesse renovado pelo Oriente e pelo cristianismo medieval, foi mais favorável às cruzadas, consideradas novamente em seu sentido estrito original. Os primeiros historiadores modernos das cruzadas, que utilizaram ao mesmo tempo as fontes latinas, gregas e árabes, foram alemães (Wilken, em 1807, e Sybel, em 1841). Na França, a História das cruzadas de Michaud (1829), favorável às ações dos franceses no Oriente, foi acompanhada por uma Biblioteca das cruzadas, formada por excertos das crónicas europeias ocidentais, gregas, árabes e turcas e seguida pela publicação, realizada pela Academia Francesa das Inscrições, de sua monumental Colectânea das histórias das cruzadas (publicada entre 1841 e 1906). No final do século XIX, a Sociedade do Oriente latino publicou numerosos outros materiais em seus Arquivos e, em sua Revista, novas pesquisas críticas realizadas por historiadores alemães e franceses. Com base nessas pesquisas, os estudiosos do século XX puderam publicar diversas sínteses: a de R. Grousset (1934-1936), muito influenciada por referências à presença francesa na Síria; a de S. Runciman (1951-1954), mais objectiva e de cunho menos europeu; e, finalmente, uma história de autoria colectiva empreendida pela Universidade da Pensilvânia e publicada entre 1969 e 1989, ao mesmo tempo em que A. Dupront analisou, seguindo o modelo de P. Alphandéry, todos os componentes religiosos da ideia e do mito das cruzadas. A maior parte desses estudos confunde a história das cruzadas com a história dos países do Oriente latino, as quais, de facto, estão interligadas directa ou indirectamente. Sem ignorar os laços que as unem, preferimos nos limitar à história das cruzadas propriamente ditas e à dos pequenos países criados pelos cruzados na Síria e na Palestina, que acabaram por se tornar o seu objectivo essencial. Foram esses que o cardeal de Óstia, por volta de 1260, denominou de Cruzada do Ultramar (transmarina) que, segundo ele, tinha a mesma natureza que a Cruzada Cismarina, dirigida contra os inimigos da Igreja na Europa. Lembramos aqui esses desvios para outros objectivos que não a Terra Santa principalmente pela oposição que eles provocaram. Contudo, o aspecto europeu, antigamente negligenciado, é modernamente reivindicado pelos defensores anglo-saxões de uma concepção pluralista das cruzadas (J. Riley-Smith, E. Siberry, N. Housley), para os quais, além disso, elas não se limitaram ao período tradicional, e sim se prolongaram até o século XVIII.
O entusiasmo colectivo provocado pela pregação da Primeira Cruzada surpreendeu até mesmo seu iniciador, o papa Urbano II, e ainda hoje continua a causar espanto. Durante os últimos trinta anos, numerosas pesquisas dedicadas à questão da origem das cruzadas desvendaram seus elementos essenciais, salientando muitas vezes o objectivo principal de cada pesquisa com exclusão dos outros. Podemos, de forma plenamente justificada, salientar as condições sociais e económicas do final do século XI: alto crescimento demográfico, falta de terras cultiváveis, crescimento da economia monetária e das trocas comerciais, início da expansão italiana pelo Mediterrâneo. Em parte, elas explicam e, por outro lado, tornam possível o movimento que impulsiona para o Oriente alguns ocidentais (nobres relativamente desprovidos de terras e multidões de pobres em busca de melhores condições materiais e espirituais). Embora nem de longe neguemos a existência dessas condições, não pretendemos tratar delas aqui. Preferimos salientar o valor dos factores específicos que explicam porque esse entusiasmo pelo Oriente assumiu o formato das cruzadas. Inicialmente, as causas afastadas: as constantes peregrinações individuais a Jerusalém e, igualmente, a doutrina e a prática da justiça das guerras contra os sarracenos. A ideia de cruzada nasceu do encontro dessas duas tradições. Mas, para de facto provocá-la, era preciso algum tipo de catalisador: uma causa próxima ou um pretexto, e esta foi a ideia, amparada em uma profunda ignorância do Oriente, de levar socorro aos cristãos orientais que estavam sendo oprimidos pelos turcos, segundo se acreditava.

As peregrinações a Jerusalém
Durante muito tempo a figura do cruzado foi referida nos textos medievais como a de um peregrino (peregrinus), alguém que realizava uma viagem à cidade santa de Jerusalém. A peregrinação aos lugares santos foi, portanto, um dos elementos primordiais das cruzadas e as definiu quase inteiramente. A Jerusalém terrestre, a montanha santa, a cidade de Deus, colocada no meio das nações, a mãe dos povos permaneceu para os cristãos como o centro do mundo espiritual. Esse lugar se tornou ainda mais santo porque a essa tradição hebraica se acrescentou o desejo de buscar, como escreveu Orígenes, os vestígios de Cristo: a gruta da Natividade, o Calvário e o Santo Sepulcro foram redescobertos na época do imperador Constantino, e sobre esses lugares foram edificadas basílicas, ao mesmo tempo em que a Verdadeira Cruz, a relíquia mais preciosa de todas, se tornou o objecto de um culto particular. Todavia, a peregrinação não era uma obrigação religiosa: São Jerónimo a considerava como um acto de fé, mas reconhecia que não era indispensável; segundo a maneira de pensar de Santo Agostinho, era até mesmo nociva, e a moda que impulsionou algumas damas da corte imperial a passarem uma espécie de férias na Terra Santa foi objecto das críticas mordazes dos padres gregos. Mas a corrente que levava os fiéis à Palestina não foi em absoluto afectada por essas opiniões. Nem o fim do mundo romano e a insegurança que daí surgiu e nem sequer a conquista árabe conseguiram interromper esse movimento; ele persistiu, ainda que atenuado, durante os séculos VII e VIII. As dificuldades sofridas durante a viagem a partir de então pareceram até mesmo fazer parte e reforçar a espiritualidade das peregrinações». In Cécile Morrisson, Cruzadas, Les Croisades, Presses Universitaires de France, L&PM Pocket, 2013, ISBN 978-852-542-948-3.

Cortesia de L&PM Pocket/JDACT