domingo, 12 de junho de 2016

A Rapariga no Comboio. Paula Hawkins. «Aquela foi a minha primeira casa. Não a casa dos meus pais, nem um apartamento partilhado com colegas: foi a “minha” primeira casa»

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… 8 de Julho de 2013
«(…) Consigo imaginar o toque das mãos dele, a sua leve pressão, revigorante e protectora. Às vezes dou por mim a tentar lembrar-me da última vez que tive alguma espécie de contacto físico relevante com outra pessoa, nem que tenha sido um abraço ou um aperto de mão caloroso, e sinto o coração estremecer-me.

… 9 de Julho de 2013
O monte de roupa da semana passada ainda ali está, e parece mais sujo e mais abandonado do que há uns dias. Li algures que um comboio, quando nos atropela, é capaz de nos arrancar a roupa do corpo. Não é assim tão invulgar, ser atropelado por um comboio. Duas a três centenas de mortes por ano, é o que dizem, portanto pelo menos uma dia sim, dia não. Não sei quantas serão acidentais. Olho com atenção, enquanto o comboio passa lentamente, à procura de sangue nas roupas, mas não vejo nada. O comboio pára no semáforo, como de costume. Consigo ver a Jess de pé no pátio à frente das portas duplas. Tem um vestido rosa-choque e os pés descalços. Está a olhar por cima do ombro, para dentro de casa; deve estar a falar com o Jason, que deve estar a fazer o pequeno-almoço. Fico de olhos presos na Jess, na casa dela, enquanto o comboio vai arrancando. Não quero ver as outras casas; não quero sobretudo ver a casa quatro portas abaixo, aquela que dantes era a minha.
Morei no n.º X de Blenheim Road durante cinco anos, anos de uma felicidade absoluta e de uma miséria completa. Agora não consigo olhar para lá. Aquela foi a minha primeira casa. Não a casa dos meus pais, nem um apartamento partilhado com colegas: foi a minha primeira casa. Simplesmente não consigo olhar para lá. Ou consigo, e até olho, e quero olhar, mas não quero, pelo menos tento não olhar. Todos os dias digo a mim própria para não olhar, e todos os dias olho para lá. Não consigo evitar, ainda que não haja lá nada que eu queira ver, ainda que tudo o que eu vir só poderá deixar-me magoada. Ainda que me lembre perfeitamente do que senti naquela vez em que olhei para cima e reparei que as persianas beges do quarto do primeiro andar tinham desaparecido, substituídas por umas cortinas quaisquer cor-de-rosa-claras; ainda que ainda me lembre da dor que senti ao ver a Anna a regar as roseiras junto à cerca, com a t-shirt esticada por cima da sua grande barriga, e de ter mordido o lábio até fazer sangue.
Fecho os olhos com força e conto até dez, quinze, vinte. Pronto, agora já desapareceu, nada há para ver. Entramos na estação de Witney e voltamos a sair, com o comboio a acelerar a marcha à medida que os subúrbios se diluem na suja e pardacenta região norte de Londres, as casas geminadas substituídas por pontes cheias de grafiti e edifícios vazios com as janelas partidas. Quanto mais nos aproximamos de Euston, mais ansiosa me sinto; a tensão aumenta; como será o dia de hoje? Há um prédio asqueroso de betão do lado direito da linha, uns 500 metros antes de entrarmos em Euston. Alguém desenhou na parede uma seta a apontar para a estação junto às palavras fim de viagem. Penso na trouxa de roupas junto à linha e sinto a garganta apertada.
O comboio da tarde, o das 17h56, é um pouco mais lento do que o da manhã: a viagem leva uma hora e um minuto, sete minutos a mais, apesar de parar nas mesmas estações. Pouco me importa, porque não tenho grande pressa de voltar a Ashbury tal como não tenho grande pressa de chegar a Londres de manhã. Não só por ser Ashbury embora o sítio seja suficientemente mau, uma cidade-dormitório dos anos 60 que se espalhou como um tumor no coração de Buckinghamshire. Não é melhor nem pior do que todas as outras cidades iguais a essa, o centro cheio de cafés e lojas de telefones móveis e sucursais da JD Sports, cercado por uma faixa de subúrbios, seguida pelo grande cinema multiplex com hipermercado da Tesco. Vivo num quarteirão finório (mais ou menos) e novinho em folha (assim-assim), que fica no sítio onde o coração comercial da cidade se começa a fundir nos arrabaldes residenciais, mas não é essa a minha casa. A minha casa é a vivenda geminada vitoriana junto ao caminho de ferro, aquela de que eu era dona a meias. Em Ashbury não sou dona da casa, nem sequer inquilina: sou uma mera ocupante, instalada no pequeno quarto de hóspedes do duplex desenxabido e inofensivo da Cathy, vítima do seu favor e da sua misericórdia». In Paula Hawkins, A Rapariga no Comboio, 2015, tradução de José Leiria, Topseller, 20/20 Editora, 2015, ISBN 978-989-880-054-1.

Cortesia de Topseller/JDACT