sábado, 4 de junho de 2016

Os Pecados da Rainha Santa Isabel. António Cândido Franco. «E que dizer do de Dinis, fustigado pelo chicote do filho até morrer de apoplexia. Salva-se Isabel, com uma vida de surpresas, de imprevistos, de contradições, uma existência copiosa»

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«(…) Anteponho sem acanhamento Leonor Teles a Inês de Castro. São ambas mártires do Amor, mas Inês é a rosa passiva que uma mão bruta desfolhou enquanto Leonor é a chama activa que só a perfídia apagou. É ela a verdadeira heroína feminina do amor em Portugal. Foi tão longe em ousadia, subiu tão alto em exigência de amar, alcançou tanto, que lhe tiraram a coroa e a isolaram num cárcere, cuspindo vitupérios no seu nome e contrafazendo os seus feitos. Nada no comércio familiar dos dias é tão fácil de adulterar como a urgência de amar. E quando esse aperto tem como ponto de partida uma mulher qualquer seriedade fica para sempre comprometida. Adeus reputação. E eis uma mulher de excepção, como Leonor Teles, transformada em adúltera pérfida e criminosa sem perdão. Mas a História, velha patranheira, não me engana e por isso ainda hoje, à distância de seiscentos anos, ouço o rugido da louca paixão de Leonor. Que cabeça estupenda e altiva! Que bramido convulsivo de leoa! Regresso pois a essa noite do tempo que é a Idade Média. Desta vez o que suscita a minha curiosidade são os antecedentes de Pedro. Convenço-me que o seu drama se encontra todo nos antepassados, ao modo do que acontece com a árvore que está dobrada na semente. Conheço bem o safardana do pai, a figura mais trágica da História de Portugal. Sopra nele uma furacão húmido e bolorento, o mesmo que instigou Macbeth a matar Duncan para lhe tomar o lugar. Foi um ambicioso sanguinário, que esteve para virar o pai e acabou a apunhalar o filho. O herói do Salado! Que capa grossa e que eufemismo para um assassino! Cai-lhe melhor o impropério descabelado que a medalha do prémio. A sua tragédia foi a da cobiça e a do remorso, ainda que o último lhe tenha chegado em hora tão tardia como aziaga, quando a filha, empestada e mofina, lhe veio de Castela morrer aos soluços nos braços lassos. Afonso IV cola-se de tal modo à história do filho que não se pode abordar um sem dar de caras com o outro. Conheço pois de ginjeira, oh, se conheço, este monstro, cujas mãos estão para sempre manchadas de sangue cru.
Mas os avós de Pedro, os pais de Afonso IV Dinis e Isabel, passaram-me até aqui despercebidos. São quase uma ausência nas minhas palavras. E no entanto que drama extraordinário se esconde na vida de ambos. Nele reside a explicação de significativa parcela do que depois aconteceu. A memória da História dura se tanto quatro gerações. Volvidas elas, tudo se renova em novo lance, como se nenhuma continuidade se sentisse entre o antes e o depois. Quem se reconhece no tetravô? Ninguém. Assim entre Dinis e Fernando, além do quadro mais criativo da nossa Idade Média, treme a mesma vibração. Quem não vê no alaúde de Dinis, o pandeiro de Pedro? E no coração instável, inflamado e cheio de Dinis quem não sente o órgão com que Pedro amou Constança e Inês? Até a perturbante saudade, que só alagou o imaginário português depois do mórbido desaparecimento de Inês, com a gelada solidão de Pedro, já se entrevê num grito de aflição duma canção de Dinis, que soidade hei de nha senhor. Quem não sente neste intenso e desmedido apetite do avô o desesperado e louco desejo do neto? Resta Isabel, essa misteriosa rainha de Portugal que nos chegou doutro agro, menos travoso e melancólico. Faz assim neste novelo de histórias e acções a impressão duma estranha. É ela o motivo do meu regresso ao passado; é por ela que me desligo do presente e caminho entre ruínas e espectros, com eles me confundindo. O de Manfredo assusta-me, morro no campo de batalha, e surgido em espectro fantasmático no primeiro círculo do Purgatório de Dante; o de Frederico II enche-me de respeito; já o de Pedro II de Aragão me entristece de morte e o de Conradino me comove até às lágrimas. E que dizer do de Dinis, fustigado pelo chicote do filho até morrer de apoplexia. Salva-se Isabel, com uma vida de surpresas, de imprevistos, de contradições, uma existência copiosa, que é uma pena andar desperdiçada e tão mal aproveitada, de tão mal contada. Mas também ela, Isabel, é um espectro triste, vivendo o drama fundo da dor. Ainda assim chega uma vida como a dela para redimir os desterros dum pobre contador.
Isabel veio de Aragão, na outra ponta da Península, a centenas e centenas de quilómetros de demora. O nicho natal, no côncavo duma mão, com o Ebro e o Guadalaviar a sulcarem a palma, vivia então a idade de todas as maravilhas; era porventura a primeira potência comercial da Europa, para em breve se tornar, com os irmãos de Isabel no trono, na única e indiscutível potência imperial do Mediterrâneo, das Baleares às ilhas do mar Egeu. Os catalães, industriosos por oficio, expansivos por situação, ocupavam as ilhas do mar Tirreno, reinavam em Nápoles e La Valeta, tinham vassalos na Grécia e na Anatólia. O imperador de Constantinopla, rendido ao fausto e temeroso da força, não se retraía em confiar o título de césar ao representante do rei de Aragão; o patoá catalão era o parolar franco daquelas paragens. Caíam as derradeiras fortalezas de francos e germanos na Palestina, pondo cobro às Cruzadas, e iniciavam os da Catalunha a gesta da sua expansão. Os almogáveres catalães, encabeçados por Rogério Flor, valiam os bucéfalos de Alexandre e os centos romanos, quanto mais uma cruzada. Por isso tiveram a crónica de Muntaner, que vale Tucídides e Tito Lívio. Uma tal prosa, esplêndida como flor de oiro, é em qualquer língua um penhor de longevidade tão comprida como a de Matusalém». In António Cândido Franco, Os Pecados da Rainha Santa Isabel, Ésquilo, Lisboa, 2010, ISBN 978-989-809-289-2.

Cortesia de Ésquilo/JDACT