quinta-feira, 30 de junho de 2016

Contos e Fantasias. Maria Amália Carvalho. «Ela também lhe não escrevera, o que o não surpreendera nada. Estava tão costumado a ser uma coisa inútil e desprezada, que nunca lhe viera à ideia a possibilidade sequer de possuir uma carta dela»

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«(…) Os operários tinham de respeita-lo. Eles não tinham precisão nenhuma de se rir do seu corpo enfezado e raquítico. Não é preciso ser-se atlético para se ser respeitado pelos homens a quem se paga. Tadeu havia de arranjar algum meio de lhes pagar. Andava então doente, esquisito, com uma excitação nervosa que o torturava. O seu afecto por Margarida tivera uma recrudescência violenta e dolorosa. Tinha vagos pressentimentos que o faziam chorar. Parecera-lhe que a sua tia, uma vez, ao encontrá-lo num corredor, olhara para ele com uma aguda ironia malévola. Não sabes, Tadeu? Gritou Margarida entrando como um raio de sol no quarto onde costumava brincar com o primo. Não sabes? E atirou-lhe negligentemente aos pés com um feixe de flores e de folhas verdes que estivera colhendo na quinta. Também eu vou com o pai e a mãe. Vamos a Paris... Muito longe... Muito longe... Estive à escuta…, percebi umas coisas mas não percebi outras. Falaram num convento…, no Sacré Coeur... Sabes o que é?...  Tadeu sabia. Não disse nada, mas no outro dia não pôde levantar-se da cama. Tinha dores em todo o corpo e um grande cansaço, como de quem deu uma larga caminhada. Gemia baixinho abrasado em febre, e quando pediu muito humildemente, com medo de recusa, para ver Margarida, disseram-lhe que a doença dele podia pegar-se e que as meninas não iam ao quarto dos homens. Pois isto é um homem? Pensava Tadeu desolado. Margarida de endoidecida com a mudança, com o movimento, com a espectativa de uma existência desconhecida e nova, esqueceu-se completamente do enfermo. Partiu sem pedir sequer para lhe dizer adeus!... Quando Tadeu ao cabo de um mês de doença saiu do quarto com o rosto macilento, abatido, cansado, como o de um velho, com a espinha dobrada e as magras pernas vacilantes, pediu para ir ao quarto onde brincava com a sua pérola, e agachou-se a um cantinho a chorar com uns uivos dolorosos, com uns uivos caninos que faziam mal. Sentia-se para sempre só...
O marquês tinha ido sozinho para França. Fora, ao que se dizia, buscar a filha ao Sacré-Coeur. A educação de Margarida devia estar completa. Fora-se embora com nove anos de idade, e já se tinham passado sete depois que ela partira. Sete anos! Que longo período! A casa dos marqueses era pouco mais ou menos a mesma coisa. Tadeu perdera a sua mãe, mas aquela figura apagada, melancólica, de uma debilidade de valetudinária, pouca falta tinha feito no palácio iluminado e radioso. O marquês aconselhado por alguma pessoa de juízo e de caridade tinha consentido a que logo depois da partida de Margarida seu sobrinho entrasse para um colégio. Também já lhe não servia para nada. Com o seu corpo magro e desengonçado, um corpo de funambulo, um corpo de grotesco, tinha melancolias quixotescas que incomodavam quem o via. Os criados deram por mais de uma vez com o rapazola a chorar de bruços num recanto do jardim, chamado o canteiro de Margarida. Era um pequeno espaço semeado de flores, onde principalmente abundavam os malmequeres brancos que tinham o poético nome da filha do marquês. Havia ali uma grande árvore, um castanheiro copado cuja rama folhuda abrigava os longos pensamentos dolorosos de Tadeu. Não se podia consolar! Era ali naquele sítio fresco, esmaltado de flores, exalando um cheiro agreste e sadio, que ele se deixava ficar horas e horas esquecido de todos, numa espécie de letargo bestial, o letargo de um animal ferido. E desfiava na memória todo o seu passado, toda a vida que vivera, abandonado, desprezado, perseguido de chufas ou de maus tratos, de caprichos humilhantes, ou de observações glacialmente desdenhosas. Só ela nunca o ferira! Só ela fora no seu viver de cão apedrejado um consolo dulcíssimo! Uma nesga do céu que se entreabrira! Só ela nunca se tinha rido à custa dele, e fora ele, o mísero, o abandonado, o enfermo, que tivera o primeiro sorriso daquela boquinha de rosas, o primeiro beijo daqueles lábios frescos e húmidos de leite.
Era feio, era raquítico, era estúpido e desastrado. Todos o conheciam, todos o repetiam em alto e bom som para que ele o não ignorasse, mas dia amava-o; ela não o dizia, não o pensava, não o tinha notado sequer! Para dia era forte, e grande, e poderoso! A ele é que Margarida confiara sempre os seus desejos, os seus sonhos, os seus afectos de criança mimosa. Ralhava-lhe às vezes, batia-lhe, quando aspirava ao impossível que Tadeu lhe não podia dar, mas as crianças ricas têm horas de tédio só comparáveis ás horas sinistras de um imperador romano, e Tadeu compreendia isso tanto, que antes queria as cóleras, do que os desalentos rápidos e violentíssimos da sua pérola. Tudo que houvera bom na sua vida lhe tinha vindo dela. Dos outros, nada! E ele odiava todos os outros, só para poder adorá-la com um culto exclusivo de negro pelo seu fetiche. Não perguntava por notícias; para quê? Tinha a certeza íntima de que lhas não dariam completas nem verdadeiras. Antes não queria saber nada, do que banalizar a sua idolatria, revelando-a aos seus inimigos. Ela também lhe não escrevera, o que o não surpreendera nada. Estava tão costumado a ser uma coisa inútil e desprezada, que nunca lhe viera à ideia a possibilidade sequer de possuir uma carta dela. No entanto ia adoecendo, definhando, parecia uma sombra. Um médico que o viu torceu o nariz, e deu claramente a entender que aquilo nunca chegaria a ser um homem. Foi então que se lembraram de o mandar para um colégio, em primeiro lugar para não terem o desgosto de o ver a cada passo, em segundo lugar para o distraírem da ideia fixa que o estava consumindo. No primeiro dia em que Tadeu fez a sua entrada no colégio houve uma tal galhofa, um gáudio tão extraordinário entre a rapaziada, que os professores para manterem a ordem tiveram de empregar severos castigos. Não havia meio de o ver sem rir. Tinha um tic nervoso a um canto da boca, tinha os olhos de vidro embaciado, tinha as pernas muito magras e muito cambadas, e um modo de falar tímido, acanhado, medroso que era de fazer morrer de riso os rapazes». In Maria Amália Vaz de Carvalho, Contos Fantasias e Reflexões (da primeira mulher a ingressar na Academia das Ciências de Lisboa), 1880, Luso Livros, Nova Forma de Ler, ePub, Uma História Verdadeira, Wikipedia.

Cortesia de LLivros/JDACT