segunda-feira, 27 de junho de 2016

O Segredo do Anel. Kathleen McGowan. «E, embora a comunidade convivesse em profunda paz espiritual, tinha sua quota de inimigos. Roger-Bernard gostava de dizer que a luz maior atrai as trevas mais profundas. Era quase um gigante…»

jdact e wikipedia

«Não restava muito tempo. A velha puxou o xaile esfarrapado em torno dos ombros. O Outono chegara mais cedo às montanhas vermelhas naquele ano e ela podia senti-lo nos ossos. Suavemente, devagar, flexionou os dedos, desejando que as juntas enrijecidas relaxassem. As mãos não podiam lhe faltar agora, não com tanta coisa a fazer. Tinha de acabar de escrever naquela noite. Tamar chegaria em breve com os jarros e era preciso que tudo estivesse pronto. Ela permitiu-se um longo suspiro, meio trêmulo. Sinto-me cansada há muito tempo. Tempo demais. Aquela missão final, ela sabia, seria a última que teria neste mundo. Os dias passados em recordação haviam drenado a vida que ainda pulsava no corpo sem viço. Os ossos velhos estavam sobrecarregados pelo inexprimível pesar e cansaço daqueles que sobrevivem às pessoas amadas. As provações a que Deus a submetera haviam sido muitas e rigorosas. Somente Tamar, a única filha mulher e a última criança viva, permanecia com ela. Tamar era sua bênção, o lampejo de luz naquelas horas tenebrosas, em que lembranças mais aterradoras do que pesadelos recusavam-se a ser contidas. Sua filha era agora a única outra sobrevivente do Grande Tempo, embora fosse apenas uma criança, quando todos desempenharam seu papel na história viva. Ainda assim, era um conforto saber que havia alguém que lembrava e compreendia. Os outros haviam partido. A maioria morrera, martirizada por métodos brutais demais para serem suportados. Talvez alguns ainda sobrevivessem, dispersos pelo vasto mapa do mundo de Deus. Ela nunca saberia. Muitos anos já haviam passado desde que recebera as últimas notícias dos outros, mas, de qualquer forma, orava por eles e orava do amanhecer ao anoitecer, naqueles dias de recordações muito intensas. Gostaria de ter em seu coração e alma a paz, que eles não sofressem a agonia dos milhares de noites insones. Era verdade, Tamar se tornara seu único refúgio naqueles anos de crepúsculo. Ela era jovem demais para recordar os terríveis detalhes do Tempo das Trevas, mas já tinha idade suficiente para lembrar a beleza e a graça das pessoas que Deus escolhera para trilharem Seu caminho. Ao dedicar sua vida à memória daqueles eleitos, o caminho de Tamar fora de puro amor e serviço. A singular dedicação da jovem a confortar a mãe, naqueles dias finais, fora extraordinária. Deixar minha amada filha é a única coisa difícil que me resta fazer. Mesmo agora, quando a morte vem me buscar, não posso aceitá-la de bom grado. E, no entanto… Ela espraiou seu olhar da entrada da caverna, que tinha sido seu lar por quase quarenta anos. O céu estava claro. Ela ergueu o rosto enrugado para contemplar a beleza das estrelas. Nunca deixara de se sentir maravilhada com a criação de Deus. Em algum lugar, além daquelas estrelas, as almas que mais amara neste mundo aguardavam-na. Podia senti-las agora, mais próximas do que em qualquer outro momento anterior. E podia senti-Lo. Seja feita a Sua vontade, sussurrou ela para o céu nocturno. A velha virou-se, devagar, determinada, e tornou a entrar na caverna. Respirou fundo, pegou o pergaminho áspero, os olhos contraídos na claridade mínima e enfumaçada de um lampião de óleo. Pegou o estilo e recomeçou a escrever, com todo o cuidado. … Tantos anos transcorridos e não tornou-se mais fácil agora escrever a respeito de Judas Iscariotes do que naqueles dias sinistros. Não porque eu dele fizesse qualquer julgamento, mas justamente porque não fazia. Contarei a história de Judas, e tenciono fazê-lo com justiça. Era um homem intransigente em seus princípios, e aqueles que nos seguem disso devem saber: ele não os traiu, nem a nós, por um saco de moedas de prata. A verdade é que Judas era o mais fiel dos doze. Muitas foram minhas razões para a dor ao longo dos anos que já se passaram, e, mesmo assim, considero que há apenas Um e Único cuja perda lamento mais do que a de Judas. Há muitos que me coagiriam a escrever o pior possível em relação a Judas…, a condená-lo como um traidor, alguém que não enxergava a verdade. Porém não permito-me escrever nenhuma dessas coisas, pois mentiras seriam antes mesmo que a pena tocasse o pergaminho. Muitas serão as mentiras escritas sobre o nosso tempo. Deus assim me revelou. Nego-me, pois, a escrever qualquer outra. Afinal, qual é o meu propósito, se não o de relatar toda a verdade dos acontecimentos daquele tempo? In O Evangelho de Arques segundo Maria Madalena. O Livro dos Discípulos

Marselha. Setembro de 1997
Marselha sempre fora, séculos afora, um lugar marcado pela morte. O lendário porto mantinha a reputação de covil de piratas, contrabandistas e assassinos, desde a época em que os romanos tomaram a cidade dos gregos, antes de Cristo. Ao final do século XX, os esforços do governo francês no combate ao crime na cidade finalmente permitiram que se saboreasse uma bouillabaise sem o medo de ser assaltado. Não que o crime chocasse seus habitantes. A violência estava enraizada em sua história e genética. Os calejados pescadores nem piscavam quando suas redes pegavam alguma coisa mais consistente do que frutos do mar. Roger-Bernard Gelis não era um nativo de Marselha. Nascera e fora criado nos contrafortes dos Pirenéus, numa comunidade que sobrevivia, orgulhosa, ao seu anacronismo. O século XXI não ameaçava sua cultura, muito antiga, que reverenciava os poderes do amor e da paz acima de todas as coisas terrenas. Mesmo assim, ele era um homem de meia-idade com alguma experiência do mundo, pois era o líder de seu povo. E, embora a comunidade convivesse em profunda paz espiritual, tinha sua quota de inimigos. Roger-Bernard gostava de dizer que a luz maior atrai as trevas mais profundas. Era quase um gigante, uma presença imponente para os estranhos. Aqueles que não conheciam a gentileza que prevalecia no espírito de Roger-Bernard podiam confundi-lo com alguém que devia ser temido. Alguém diria, mais tarde, que seus atacantes provavelmente não lhe eram desconhecidos. Ele deveria ter percebido o que poderia acontecer. Deveria ter compreendido que não o deixariam carregar um objecto de valor tão inestimável impunemente. Afinal, um milhão de seus ancestrais não haviam morrido por aquele mesmo tesouro? Mas o tiro fora disparado por trás, estilhaçando seu crânio antes mesmo que ele soubesse que o inimigo estava próximo. O exame de balística seria inútil para a polícia, já que os assassinos não encerraram seus feitos com o ataque. Devia haver vários deles, pois o tamanho e o peso da vítima exigiriam uma certa força para concretizar o dano. Foi um acto de misericórdia Roger-Bernard ter morrido antes que o ritual começasse. Foi poupado da exultação de seus assassinos enquanto se empenhavam na tarefa macabra. Seria possível imaginar um fervor especial nas acções seguintes, embaladas pelo antigo mantra de ódio enquanto trabalhavam. Neca eos omnes. Neca eos omnes. Separar uma cabeça humana do resto do corpo é um trabalho difícil e complicado. Exige força, determinação e um instrumento muito afiado. Os assassinos de Roger-Bernard Gelis tinham todas essas coisas e usaram-nas com extrema eficiência». In Kathleen McGowan, O Segredo do Anel, Editora Rocco, 2006, ISBN 853-252-096-0.

Cortesia de ERocco/JDACT