quarta-feira, 22 de junho de 2016

Alma. Manuel Alegre. «Estava o jogo em ponto de rebuçado, quando apareceu Gonçalo Pena, republicano de sangue azul, vagamente primo do meu pai e ainda um pouco mais alto do que ele. Tinha um grande nariz curvo e o lábio inferior um pouco caído»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Aos vinte minutos, já o Beira-Rio estava a perder por três a zero. Zeca Sucateiro, empoleirado na vedação, gritava para o Armandinho Alfaiate, que jogava a ponta esquerda: és um entrevado. Ao que o outro respondia: entrevada era a tua avó. Diga-se de passagem que naquele tempo ainda um jogador podia saltar para fora do campo e ir às fuças à assistência. Era uma cena que se repetia: Zeca Sucateiro atezanava Armandinho e este, quando menos se esperava, ferrava-lhe dois tentos no focinho. Foi o que aconteceu ao findar a primeira parte, continuava o Beira-Rio a levar três. Meu pai, além de campeão de atletismo, tinha sido jogador de futebol da Académica e possuía o diploma de treinador. Quando as coisas estavam a correr mal, o que era quase sempre, pediam-lhe ao intervalo para ele ir às cabinas tentar virar o resultado. Ele chegara a treinar o Beira-Rio, mas tinha-se chateado por causa de Zamora, o guarda-redes, (meu pai dizia keeper), assim chamado por imitar o outro, o grande Zamora da selecção de Espanha. Zamora, ou seja o Firmino, tinha qualidades. Era o que o meu pai dizia. O pior era o feitio. Sempre que Manuel Tinoco ia para trás da baliza, a coisa dava para o torto. Não que não gostasse de Zamora, mas tinha mau perder. Já com a selecção era a mesma coisa. Ao menos levassem as cores da Monarquia, dizia o Manuel Tinoco, que era republicano, fumava charuto e nunca tirava o chapéu à diplomata, nem mesmo para dormir, diziam as más línguas de Alma. Quando a selecção levava nove da Espanha, era assim que ele desabafava: ao menos vestissem a camisola da monarquia, a da República não. E o mesmo acontecia sempre que, no seu entender, Zamora dava um frango. O que, diga-se em abono da verdade, frequentemente acontecia. Então, Manuel Tinoco começava a roer o charuto e dizia-lhe por detrás da baliza: ao menos tira a camisola, não sujes as cores da tua terra. Zamora, isto é, o Firmino, ouvia uma, duas, três vezes. Mas às tantas não se aguentava: despia a camisola e desatava a correr pelo campo fora. Meu pai, que juntamente com seu irmão Tiago, tinha sido campeão nacional de estafeta de quatro por cem, levantava-se do banco e sprintava até o agarrar. Às vezes tinha de lhe pregar um par de estalos. E Zamora lá voltava para as redes do Beira-Rio.
Mas um dia, em que Manuel Tinoco tinha sido especialmente cáustico, ao ponto de lhe dizer: vai vestir a camisola do Beira-Mar, que era a pior coisa que se podia dizer a um beirariense, o Firmino não esteve com meias aquelas: saiu da baliza, amachucou o chapéu de Manuel Tinoco, o que por muitos foi tomado quase como um sacrilégio, despiu-se todo e saiu do campo em pelo. Aí o meu pai chateou-se: não corro atrás de um gajo nu. E nunca mais treinou o Beira-Rio. Mas lá ia às cabinas sempre que lhe pediam e as coisas, como era costume, estavam a correr para o torto. Não sei o que lhes disse naquele dia, mas aos dez minutos da segunda parte, já o Beira-Rio tinha reduzido para dois a três. Lembro-me perfeitamente do segundo golo: Armandinho foi marcar um corner, meu pai deu umas instruções e Almiro veio de trás e marcou. Foi de tal modo que Manuel Tinoco se virou para o meu pai e disse-lhe: amigo Lourenço, este golo é seu. Estava o jogo em ponto de rebuçado, quando apareceu Gonçalo Pena, republicano de sangue azul, vagamente primo do meu pai e ainda um pouco mais alto do que ele. Tinha um grande nariz curvo e o lábio inferior um pouco caído. Como o dos Braganças, dizia o meu pai. Vinha a pedido da minha avó. Está toda a gente à tua espera, disse ele. É uma vergonha se não vais. Mas o Beira-Rio, que era uma equipa desgraçada, estava a jogar como há muito não se via: bola recebida, bola passada, ao primeiro toque, ataques pelos flancos, cruzamentos à linha, à inglesa, como o meu pai gostava. O que ele não conseguia suportar era quando o avançado centro tinha a bola e o ponta lhe pedia: cruza. Grande burro, dizia o meu pai, não se cruza do centro para a ponta, mas da ponta para o centro.
Gonçalo Pena não me largava. Era uma figura singular e não por acaso o haviam escolhido para mensageiro. Ele tinha sido um dos homens de confiança do meu avô Geraldo Pais e suspeitava-se que fora a paixão de minha tia Elvira, irmã de minha mãe, que morreu muito nova, tuberculosa. Dele se contavam histórias extraordinárias. Companheiro de carteira do meu pai no liceu de Aveiro, estava ele um dia a carregar cartuchos na aula de Francês, quando o professor, a quem chamavam o Comme Ici, de repente lhe disparou: diga lá, ó Gonçalo, este lápis azul não é amarelo mas preto. Contava o meu pai que ele se levantou e, muito sério, começou a argumentar que não podia ser, era um contra-senso, recusava-se a dizer, ainda por cima em francês, que era a língua de Descartes, uma frase sem lógica, completamente despida de sentido. O lápis ou é azul ou não é, se é azul não é amarelo e muito menos pode ser preto. Está bem, retorquiu o Comme Ici, eu não quero filosofia, o que eu quero é a frasezinha em francês». In Manuel Alegre, Alma, Publicações dom Quixote, 1995, ISBN 978-972-202-668-0.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT