sexta-feira, 10 de junho de 2016

Vítimas da Tradição. Jean Sasson. «Naquele momento, a minha irmã Sara entrou silenciosamente na sala. Chegara cedo para a festa organizada pela família para celebrar a visita de Maha. A expressão de Sara era, como sempre, de uma calma cativante»

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«Amani, só vais até onde te levam os teus pés!, berrou Maha, a minha filha mais velha. Para enfatizar ainda mais o seu desprezo, rosnou, rodopiando para longe da irmã. E nem mais um passo! Estremeci de desalento. Onde, e com quem, teria a minha maravilhosa filha aprendido a uivar como se estivesse possuída? Maha fizera da Europa o seu lar nos últimos sete anos e eu passara muitas noites ansiosas preocupada com a nova vida da minha filha mais corajosa no estrangeiro. Seriam aqueles uivos uma indicação de que viveria uma vida psicótica a milhares de quilómetros de distância da mãe? Tive pouco tempo para ponderar o bizarro uivo de Maha. Amani, a mais nova dos meus filhos, e a segunda das raparigas, pôs-se em acção, mostrando o rosto tingido de um profundo vermelho de raiva ao saltar qual gazela do deserto para cima da irmã mais velha. Se eu não estivesse presente, as minhas duas filhas adultas teriam certamente batido uma na outra e possivelmente atirando-se para o chão num confronto físico semelhante ao que se envolviam quando eram crianças. Agarrei Maha pelo braço e puxei-a com toda a força. Ela veio contra mim e Amani tropeçou e colidiu com Kareem, o meu marido, que entrara na sala de estar levado pela explosão de gritos femininos.
O meu querido marido é um dos pais que há mais tempo sofrem no mundo árabe: antes da visita de Maha, anunciara que não continuaria a tolerar que ela e Amani se comportassem como crianças. Afinal, Amani era agora uma mulher casada, e mãe. A nossa filha mais nova, normalmente, vivia com serenidade, proclamando-se feliz no casamento e no papel de mãe de um rapazinho. A vida de Maha era o contraste absoluto; vivendo solteira numa das maiores cidades da Europa, trabalhava como executiva numa das empresas do pai e tinha uma vida social normal acompanhada dos amigos. Por repetidas vezes, Maha demonstrou capacidade de gerir facilmente a maior parte dos problemas do mundo adulto. Kareem lançou-me um olhar de incredulidade antes de levantar a voz e gritar, para se fazer ouvir acima dos protestos desdenhosos de Amani e dos guinchos raivosos de Maha. Isto tem de acabar! Já!, ordenou Kareem. Embora as minhas filhas muitas vezes ignorem as exigências da mãe, é raro furtarem-se a reagir adequadamente às ordens do pai. Senti-me a presenciar um milagre quando os gritos e insultos cessaram imediatamente.
Naquele momento, a minha irmã Sara entrou silenciosamente na sala. Chegara cedo para a festa organizada pela família para celebrar a visita de Maha. A expressão de Sara era, como sempre, de uma calma cativante, mas os seus grandes olhos negros aumentaram bastante de tamanho quando observou que a irmã e o cunhado transpiravam abundantemente, agarrados às filhas adultas. Sara olhou com interesse para a cena inusitada durante alguns momentos e depois os seus lábios curvaram-se num sorriso. Minhas queridas sobrinhas, ainda tão enfeitiçadas pelas brigas, mesmo depois de dois ossos partidos e um dente lascado? Sara recordava a mais violenta das batalhas entre as minhas filhas, ocorrida depois de Amani ter cometido a imprudência de esticar um fio no corredor das traseiras que desembocava num quarto especial onde se alojavam gatinhos recém-nascidos. Amani via os seus gatinhos como tesouros tais, que andava completamente obcecada pela ideia de alguém tentar roubá-los e vendê-los no souk dos animais.
Quis o destino que Maha se tornasse sua vítima involuntária, quando se apressava a descer o corredor. Tropeçando no fio, Maha sofreu uma queda violenta que resultou em dois pulsos partidos, pois amparara o peso do corpo com as mãos. Quando ouviu o barulho, a pequena Amani correu a descobrir a identidade do ladrão de gatinhos e descobriu a irmã a contorcer-se de dores. Ignorando que Maha sofria realmente, Amani, irritada, acusou a irmã de se preparar para roubar os gatinhos todos apenas para desocupar a casa de mais oito animais de estimação. Quando Amani era adolescente, a nossa família viajou até Meca para a peregrinação. Durante a cerimónia religiosa, a fé de Amani transformou-se; se em criança a sua fé estivera adormecida, em jovem ela apresentou-se determinada a abraçar todos os aspectos da nossa fé islâmica com uma intensidade angustiante. Desde aquela experiência religiosa crucial que Amani possuía o hábito infeliz de lançar uma sombra de dúvida sobre o comportamento de toda a gente, chegando várias vezes a acusar aqueles que a rodeavam de actos criminosos ou contrários à moral». In Jean Sasson, Vítimas da Tradição, 1992, Edições ASA, Grupo Leya, 2015, ISBN 978-989-233-039-6.

Cortesia ASA/JDACT