terça-feira, 7 de junho de 2016

Anatomia dos Mártires. João Tordo. «Poderia ser uma alcunha carinhosa, ‘jovem’, mas, como descobri poucos dias depois de chegar à redacção, era apenas a alcunha que Cinzas utilizava, havia mais de três décadas, para todos os desconhecidos…»

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«Foi na Primavera de há três anos, no princípio da crise que abalou este lado do mundo, que visitei a terra onde mataram Catarina Eufémia. Aconteceu por acaso; foi também por acaso que, nessa mesma viagem, ouvi falar pela primeira vez do homem que saltara do topo de um edifício com um manuscrito amarrado ao peito. Naquela altura, estas duas figuras, tão distantes no tempo e na geografia, porém tão próximas naquilo que incompreensivelmente as acabou por unir, diziam-me menos do que nada. Começarei por aí. Nesses tempos, dificilmente a história de um mártir me suscitaria interesse ou, o que é mais exacto e verdadeiro, dificilmente qualquer história que não fosse a minha me suscitaria interesse; era também exacto e verdadeiro que eu andava adormecido, num sentido quase literal do termo, uma vez que a vida decorria na sua boçal normalidade: a minha carreira ainda tinha importância, o meu pai ainda não enlouquecera e eu ainda não compreendera nada, isto é, ainda não me dera conta de que a nossa existência era indissociável da memória dos mortos. Também desconhecia que, paradoxalmente, só ignorando os mortos poderíamos passar incólumes por esta vida, uma vez que, ao procurar resgatá-los, eles acabariam por assombrar o resto dos nossos dias. Naquele tempo, portanto, tudo era mais simples porque eu me esquivava a despertar e, talvez por isso, porque qualquer despertar é doloroso e nos obriga a ver e porventura a tentar compreender a realidade, não podia sequer desconfiar da maneira como Catarina (e a sua história confusa, cruel e fascinante) seria, ao mesmo tempo, a origem da minha libertação e de todos os meus equívocos.
Quem me levou nessa viagem ao Sul foi Raul Cinzas, o editor-chefe do jornal onde eu trabalhava. Ou talvez minta, e tenha sido eu a levar Cinzas em viagem; pouco importa: eu conhecia-o superficialmente como o velho comunista, porque esse era o epíteto que as pessoas lhe colavam, não apenas dentro da redacção do diário, mas também noutros jornais e em certos bares que os representantes mais boémios da profissão frequentavam. Além disso, se passássemos os olhos pelos artigos e as colunas que regularmente escrevia, era impossível não reparar no seu profundo desgosto com o mundo contemporâneo e as sucessivas desilusões provocadas pelos achaques do capitalismo. Juntava-se a isto um gosto excessivo pelas tabernas, um certo pendor para a nostalgia e uma séria inclinação panfletária para a defesa dos direitos dos trabalhadores (que o levava a fazer greve com excessiva regularidade). Cinzas perfazia, a todos os títulos, a imagem perfeita do velho socialista do novo século. Nada disto me interessava muito: a única coisa que eu sabia seguramente sobre ele, nessa Primavera, era que gostava de beber, um gosto que partilhávamos; e assim, nessa noite amena, de brisas suaves e mornas e grilos trilando pelos montes, enquanto fazíamos o caminho de regresso a Lisboa pela estrada que conduzia a Beja, com Cinzas bêbedo e sentado no lugar do passageiro enquanto eu conduzia, a uma velocidade demasiado lenta até para a estrada secundária em que nos encontrávamos (uma vez que também eu havia abusado da aguardente que nos tinham servido no final da refeição que se seguiu ao lançamento do livro), eu aguardava pacientemente que ele se decidisse a trocar algumas palavras com o seu subordinado, coisa que, nos primeiros dois meses de integração nos quadros do jornal, raramente se dignara fazer. O que me disse foi: vamos fazer um desvio ali à frente, jovem.
Poderia ser uma alcunha carinhosa, jovem, mas, como descobri poucos dias depois de chegar à redacção, era apenas a alcunha que Cinzas utilizava, havia mais de três décadas, para todos os desconhecidos que surgiam por ali, incluindo um historiador reformado que, a certa altura, fora contratado temporariamente para supervisionar um dossier sobre a Primeira República. Para onde vamos? Já vais ver, respondeu. Depois, coçou o pescoço junto à maçã de adão e sacou de um pequeno frasco de metal que escondia no bolso interior do casaco. Abriu-o, deu um gole, passou-mo. Hesitei um segundo mas depois aceitei. Enquanto tossia violentamente, cuspindo baforadas de álcool para o ar, dei uma guinada ao volante e saímos da estrada em direcção a uma pequena localidade chamada Baleizão. À entrada da aldeia, Cinzas indicou-me um caminho de terra à esquerda.
Os faróis do carro iluminavam agora uma série de placas que não consegui ler; ao meter pelo caminho, ficamos imediatamente imersos em campos de longas espigas de trigo, cujas pontas maduras uma brisa morna, quase exangue, fazia ondular, como se dançassem em movimentos pendulares. Em frente, a estrada esburacada conduzia a um negrume sem traço de luz; ao meu lado, contudo, Cinzas parecia tão seguro do caminho que fazíamos que não me atrevi a perguntar-lhe nada: reduzi a velocidade, abri completamente a janela, deixando entrar o cheiro fértil da terra, e acendi um cigarro, aguardando uma ordem. Não sabia por que razão ali estávamos e, na verdade, não queria saber; a reputação do editor, de extravagante alcoólico ocasionalmente dado a acessos de cólera, era suficiente para inibir a minha curiosidade. Na verdade, eu não gostava de Raul Cinzas. Ou melhor: nessa altura, não me dizia rigorosamente nada, era apenas alguém que se atravessara na minha vida por meio dos insondáveis processos do acaso que colocam os outros no nosso caminho. Porque era meu superior hierárquico e porque, sem a sua aprovação, os meus artigos nunca veriam a luz do dia, e um jornalista cujos artigos não chegam às páginas é um caso perdido, tratava-o com aquele género de aquiescência que se oferece aos tolos, feita de concordâncias gratuitas, do ocasional elogio às suas crónicas (que me escusava a ler) e de uma silenciosa indiferença por tudo aquilo que o velho rabugento dizia». In João Tordo, Anatomia dos Mártires, Publicações dom Quixote, 2011, ISBN 978-972-204-875-0.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT