quinta-feira, 30 de junho de 2016

O Destino de Adhara. Licia Troisi. «O espaço oprimente daquele subterrâneo era iluminado por uma série de tochas presas à parede. O cheiro de mofo confundia-se com o da penetrante fumaça. Homens vestidos de branco perambulavam pelos aposentos»

jdact e wikipedia

«O homem de preto seguiu adiante sem pressa. Movia-se com segurança pelas ruelas desertas da cidade, o capuz a encobrir-lhe o rosto, a capa roçando em suas botas. Sombra entre as sombras, virou decididamente na rua que já conhecia. Havia explorado o lugar alguns dias antes. A entrada era anónima: uma porta de madeira encimada por uma viga de pedra. Não precisou olhar para o símbolo gravado na arquitrave para saber que tinha chegado. Parou por um momento, sabendo bem que aquele não era o seu objectivo principal, pois a sua missão era outra. É imprescindível, é de vital importância que encontre o sujeito, está entendendo?, dissera Kriss, da última vez que haviam se encontrado. Eu sei, limitara-se a responder ele, baixando a cabeça. Então não pare até conseguir encontrá-lo, e não deixe nada ou ninguém se meter em seu caminho. Kriss fitara-o sem acrescentar coisa alguma, para que o homem de preto pudesse avaliar devidamente aquele silêncio e preenchê-lo de sentido. Mas ele não era do tipo que podia ser amedrontado tão facilmente. Pode funcionar com quem te adora como um deus, mas comigo não dá. Fizera uma mesura em sinal de respeito e dirigira-se à saída. Não se esqueça do nosso trato, dissera Kriss, antes de ele superar o limiar da porta. O homem de preto detivera-se por um instante. Nunca poderia esquecer, pensou com seus botões. E agora, lá estava ele, diante daquela porta. Ainda tinha a possibilidade de parar, de ir embora. De retomar o seu caminho e voltar à sua missão. Está preparado até para isto, a fim de alcançar o seu objectivo?, perguntou a si mesmo, enquanto os olhos se demoravam nos veios da porta. Não precisou esperar por uma resposta. Respirou fundo, devagar, e desembainhou a espada. Em seguida deu um violento pontapé na madeira e entrou. Uma sala de despojados tijolos, de tecto absurdamente baixo. Era o que o Vidente costumava repetir continuamente: é uma solução provisória, precisam ter paciência. Mas pelo menos nos garante aquele segredo, para nós tão necessário. Só poderemos pensar num local mais digno depois de o nosso plano estar bem encaminhado. O espaço oprimente daquele subterrâneo era iluminado por uma série de tochas presas à parede. O cheiro de mofo confundia-se com o da penetrante fumaça. Homens vestidos de branco perambulavam pelos aposentos, de rostos escondidos atrás de máscaras de bronze, lisas, com apenas dois furos na altura dos olhos. Portas fechadas, das quais provinham abafados murmúrios e um salmodiar lento, hipnótico. Cheiro de sangue e magia, olor de morte. Naquele pesado silêncio, o estrondo da porta derrubada ressoou com a violência de uma explosão. Os primeiros Vigias, aqueles mais perto da entrada, nem mesmo tiveram tempo de perceber o que estava acontecendo. O homem de preto ceifou-os com um único e fluido movimento da espada. As capas brancas tingiram-se de vermelho, as máscaras de bronze caíram no chão, tilintando. Por baixo, os rostos torcidos de dor de dois jovens oficiais e de um ministro. Os demais tiveram tempo para ensaiar uma reacção. Quem estava armado desembainhou a espada e começou a lutar, alguns fugiram, tentando salvar o que ainda podia. O homem de preto parecia irrefreável. Afinal de contas, os inimigos não estavam à sua altura. Durante os longos anos das suas andanças tivera a oportunidade de enfrentar adversários muito mais tarimbados, e as cicatrizes no seu corpo testemunhavam cada uma daquelas batalhas. É nisto que dá a moleza de um mundo que se acostumou com a paz, pensou com desprezo. Passos abafados atrás dele. Nem precisou olhar. Recitou as palavras, baixinho, e ficou envolvido numa esfera de prata. Os punhais levantados contra ele ricochetearam na superfície elástica da barreira. Um mágico..., murmurou alguém com horror. O homem de preto sorriu com maldade.
Adrass trancou a porta com o ferrolho. A sua respiração parecia não encontrar o caminho que, dos pulmões, levava para fora. Colou o corpo na madeira, encostando o ouvido. Estridor de lâminas, gritos, baques de corpos que tombavam no chão. O que estava acontecendo? Haviam sido descobertos? Começou a tremer. Lutou para não se deixar tomar pelo pânico. Não. Não. O que lhe haviam ensinado não era nada daquilo. Desde a primeira aula, quando pusera os pés lá dentro. Se, porventura, algum dia formos descobertos, só pensem em salvar o nosso trabalho. É a única coisa que realmente importa aqui. Estamos cuidando de algo maior, de um fim superior, não se esqueçam disto. Palavras do Vidente. Adrass engoliu em seco. Salvar o nosso trabalho. Afastou-se resolutamente da porta e dirigiu-se com firmeza às estantes presas a uma pequena parede do cubículo onde se encontrava. Procurou entre os velhos pergaminhos, entre as minuciosas anotações escritas com sua grafia miúda e elegante. Guardou numa bolsa de couro alguns documentos, rasgou outros. Revistou potes e filtros, remexeu ampolas e ervas. Anos de trabalho. Como escolher o que deveria ser salvo de uma vida inteira de labuta, apenas em poucos momentos apressados? Um vago ganido chamou a sua atenção para a mesa no meio do aposento. Adrass recuperou a calma. Ali estava o que ele tinha de salvar: a criatura. Era a única coisa que valia a pena levar para fora. Era algo muito mais importante do que sua vida desprezível, do que os estudos deles todos. Era tudo. Gritos de moças do outro lado da porta. Não! Estão matando até elas! Chegou perto da mesa, desatou as tiras de couro que prendiam a criatura, libertou-a. Segurou-a rudemente pelos ombros forçando-a a se levantar. Vamos lá, acorde, acorde logo!, disse, dando-lhe uns bofetadas nas faces. Mas ela permanecia inerte em seus braços, de olhos entreabertos que pareciam não vê-lo. Do outro lado da porta, ruídos mais violentos. Os inimigos estavam se aproximando. O coração de Adrass pulou descontrolado. Morrerei, mas o nosso trabalho não será perdido. Sim, morrerei, mas o nosso trabalho não terá sido em vão..., repetia como um mantra as frases que lhe haviam ensinado quando se tornara Vigia. Se pelo menos colaborasse!, surpreendeu-se ao pensar quase com raiva. Por que a criatura não acordava? Puxou-a para longe da mesa, com força, ela desmoronou inerte no chão. Mal conseguia mexer os lábios. Adrass pegou uma ampola com água e derramou-a em cima da criatura. Ela estremeceu. Isso mesmo, muito bem..., preste atenção. Segurou-a pelos ombros, fitou-a nos olhos, olhos apagados. Talvez ainda fosse cedo demais... Procurou afastar o pensamento. Agora vamos sair daqui, está entendendo? Preste atenção! Um vislumbre de vaga compreensão animou os olhos da criatura. Isso mesmo, é assim que se faz! Um estrondo do outro lado da porta. Adrass estremeceu. Segurou o corpo por trás, voltou a levantá-lo e arrastou-o consigo. conseguiu alcançar um botão na parede. Uma pequena parte do muro estalou revelando um caminho estreito e escuro». In Licia Troisi, O Destino de Adhara, Lendas do Mundo Emerso, Editora Rocco, 2008, ISBN 978-858-122-046-8.

Cortesia de ERocco/JDACT