quarta-feira, 29 de junho de 2016

A Irmandade Perdida. Anne Fortier. «Tinha certeza de que a maior parte da plateia concordava comigo, mas mesmo assim ninguém teve coragem de se levantar e me defender. O silêncio foi tal que…»

jdact e wikipedia

«Do jeito enigmático que lhe era peculiar, minha avó fez o possível para me ensinar a enfrentar a carnificina da vida. Cascos descontrolados, carruagens velozes, machos predatórios..., graças à avó, quando fiz 10 anos tudo isso já estava mais ou menos dominado. Infelizmente, o mundo se revelou muito diferente do nobre campo de batalha que ela me levara a esperar. O valor do que estava em jogo era irrisório, as pessoas pálidas e covardes; minhas artes de amazona de nada me valiam. E com certeza nada do que a avó me ensinara durante nossas longas tardes de chá de hortelã e monstros imaginários poderia ter me preparado para as correntes e ventos contrários do mundo académico. Naquela tarde específica de Outubro, o dia em que tudo começou, uma rajada de ira inesperada me derrubou no meio da apresentação de um artigo. Instada pelo todo-poderoso professor Vandenbosch, sentado na primeira fila, a presidente da mesa se levantou e, covardemente, passou um dedo pela garganta para me informar que eu tinha exactamente zero minuto para terminar minha apresentação. Segundo meu próprio relógio, eu estava dentro do tempo regulamentar, mas meu futuro académico dependia da aprovação daqueles distintos especialistas. Para concluir... Olhei de relance para o professor Vandenbosch: ele me encarava com um olhar belicoso, braços e pernas cruzados..., fica claro que, apesar de todas as descrições explícitas de seus hábitos reprodutivos, esses autores gregos nunca consideraram as valentes amazonas como algo mais do que companheiras fictícias e quase eróticas em seus jogos. Um burburinho de animação percorreu o auditório. Mais cedo, ao chegar do pátio chuvoso, estavam todos molhados e um tanto desanimados, mas minha apresentação obviamente contribuíra para aquecer o recinto. No entanto... Meneei a cabeça para a presidente da mesa de modo a lhe assegurar que estava quase terminando. ... mesmo sabendo que essas mulheres guerreiras sedentas de sangue não passavam de ficção, nossos autores não se acanharam em usá-las nas histórias de alerta sobre os perigos da liberdade feminina irrestrita. Por quê? Corri os olhos pela plateia, tentando contar meus aliados. Porque os gregos se sentiam obrigados a manter as esposas dentro de casa? Não se sabe. Mas com certeza esse alarmismo em relação às amazonas deve ter contribuído para justificar o tratamento inferior dado às mulheres. Assim que as palmas silenciaram, o professor Vandenbosch passou por cima da presidente da mesa, levantou-se e olhou em volta com um ar sério, esmagando com a simples força do olhar as muitas mãos levantadas. Então se virou para mim com um sorrisinho arrogante estampado no rosto.
Obrigado, Dra. Morgan. Alegra-me constatar que deixei de ser o académico mais ultrapassado de Oxford. Espero, para o seu bem, que a academia um dia volte a precisar do feminismo. De resto, fico aliviado em dizer que há muito tempo já passamos dessa fase e aposentamos o velho machado de batalha. Embora o ataque tivesse vindo disfarçado de brincadeira, foi tão absurdo que ninguém riu. Mesmo eu, presa atrás do ambão, fiquei pasma demais para ensaiar uma reacção. Tinha certeza de que a maior parte da plateia concordava comigo, mas mesmo assim ninguém teve coragem de se levantar e me defender. O silêncio foi tal que dava para ouvir o leve tamborilar das gotas de chuva no telhado de cobre. Dez torturantes minutos depois, consegui fugir do auditório e me refugiar em meio à névoa húmida de Outubro. Apertei um pouco mais o xaile em volta do corpo e tentei visualizar o bule de chá que me esperava em casa..., mas ainda estava furiosa demais. O professor Vandenbosch nunca gostara de mim. Segundo um relato particularmente maldoso, ele certa vez divertira os colegas com uma fantasia na qual eu era raptada de Oxford para estrelar uma série de TV sobre o poder da mulher. Já a minha teoria era que ele estava-me usando para atingir sua rival, Katherine Kent, minha supervisora, achando que conseguiria enfraquecer a posição dela atacando seus protegidos. Katherine, é claro, tinha-me desaconselhado a fazer outra apresentação sobre as amazonas. Se continuar nessa linha de investigação, vai virar gozo académico, afirmara ela, directa como sempre. Eu me recusava a acreditar nisso. Um dia aquele tema iria cair nas graças das pessoas e o professor Vandenbosch nada poderia fazer para sufocá-lo. Faltava só eu arrumar tempo para terminar meu livro ou, melhor de tudo, conseguir pôr as mãos no Historia Amazonum. Mais uma carta para Istambul, dessa vez de próprio punho, e quem sabe a caverna mágica de Grigor Reznik finalmente se abrisse para mim. Eu precisava tentar. Devia isso à avó.
Ao avançar cabisbaixa pela rua, eu estava preocupada demais para reparar que alguém me seguia, até que um homem me alcançou na faixa de pedestres da High Street e tomou a liberdade de me abrigar sob seu guarda-chuva. Tinha a aparência de um sessentão jovial, e com certeza não fazia parte do mundo académico: por baixo da capa impermeável sem mancha nenhuma pude ver que vestia um fato caro, e desconfiei que suas meias combinassem com a gravata. Dra. Morgan, começou ele, com um sotaque que revelava origens sul-africanas. Gostei da sua apresentação. A senhora tem um minutinho? Ele meneou a cabeça para o outro lado da rua, em direcção ao Grand Café. Posso convidá-la para beber alguma coisa? A senhora parece estar precisando. Que gentileza... Olhei para o relógio. Mas infelizmente estou atrasada para outro compromisso. E estava mesmo. Aquela era a semana de selecção de novos membros no clube universitário de esgrima e eu prometera passar no final do dia para ajudar na demonstração dos equipamentos. Bem a calhar, por sinal, já que estava mais que disposta a atacar alguns inimigos imaginários. Ah..., fez o sujeito, mas foi me seguindo pela rua, e as pontas do guarda-chuva espetaram meu cabelo. E mais tarde? A senhora está livre hoje à noite? Hesitei. Os olhos daquele homem tinham um quê perturbador: mais intensos do que o normal e com um tom meio amarelado, não muito diferente do das corujas no alto das estantes no escritório do meu pai. Em vez de virar na Magpie Lane, que era escura e quase deserta, parei na esquina e exibi o que deveria ser um sorriso simpático. Acho que não ouvi direito o seu nome. John Ludwig. Tome... Ele revirou os bolsos por alguns instantes e fez uma careta. Estou sem cartão. Não faz mal. Tenho um convite a lhe fazer. Ele me encarou com os olhos semicerrados, atento, como para se certificar do meu valor. A fundação para a qual trabalho fez uma descoberta importantíssima, falou, mas fez uma pausa e franziu o cenho, talvez incomodado por estarmos na rua. Tem certeza de que não posso lhe oferecer uma bebida?» In Anne Fortier, A Irmandade Perdida, 2014, Editora Arqueiro, 2015, ISBN 978-858-041-453-0.

Cortesia de EArqueiro/JDACT