sexta-feira, 3 de junho de 2016

Palavras Cínicas. Albino Forjaz Sampaio. «É o panteão ignorado dessa carne infame que o homem chicoteou com beijos. E não sei, como de cada um, assim amassado em lágrimas, não floriu uma chaga…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Carta II
«(…) E o gozo, o gozo brutal, o gozo Deus, fere-me a retina, fricciona-me a epiderme, abraça-me, deslumbra-me e puxa-me para si com seus pulsos de aço como uma amante no cio. O vício tem recantos como uma cidade à noite. A quantos já teria pertencido aquilo? Quem seriam? Tateio. A carne, esta coisa brutal cheia de veias, de nervos, tendões, glândulas e ossos, cheia de instintos e misérias; a carne que sua e cheira mal; que se desforma, se infecta, se ulcera, se cobre de gelhas, de pústulas, verrugas e pêlos (d’ Annunzio), é mole, viscosa, flácida. Parece moída. Quantos a terão beijado? Quantos a terão acariciado? Quantos lhe terão batido, quantos? O pobre corpo nu corre a roda toda como um copo numa adega, amarrota-se, enlameia-se. Toca-me a vez: os mesmos abraços que dei à minha noiva, os mesmos beijos que dei à minha mãe dou-os agora a esta. Isto é lógico. Vender o corpo é melhor do que vender a alma, mas vender a alma e o corpo como seria bom! Mulheres honradas? Ah, tu crês em mulheres honradas e homens bons? És parvo. Todo o homem atraiçoa e toda a mulher falseia. Todos mentem. Mentira é o céu, o inferno é mentira. É mentira Deus, é mentira o Bem, o Amor e a humanidade. Em que acredito eu? No crime e no dinheiro. O crime é Deus, o dinheiro é Deus, e de ambos o dinheiro é maior. É por dinheiro que se compram almas, por dinheiro é que as mulheres se vendem. Quantas almas não conterá um saco de dobrões, quantas? A quantos corpos não poderia ele despir? Por dinheiro tudo se compra. As bençãos das santas e o crânio dos heróis, a camisa de dormir da tua noiva e o rosário do teu confessor. Ciganas, saltimbancos e mendigos, fidalgos e aguardente, trapeiros e sacerdotes, coveiros e apóstolos, santos e famintos, sultanas e cadelas, bobos e cortesãs, escravos e libertos, tudo isto é da sua coorte. O próprio Deus, o próprio céu rende-se, quando se lhe mostra um punhado de ouro. E como o dinheiro ri! Tu nunca ouviste o dinheiro rir? Despeja um saco de ouro e ouvirás uma gargalhada. O som do ouro que se choca é o seu riso, e esse riso a quantos não despedaça a alma?!
Quero que mates o teu irmão, que dispas a tua irmã na praça pública, que esbofeteies a tua mãe. Chego-me a ti e digo-te: ouro, terás muito ouro, um grande deboche de ouro se o fizeres. E tu não resistirás, eu sei-o. Uma prostituta não é ninguém. aquela que se dá aos marujos e aos ladrões, à noite, nos recantos, levando-lhes a sua carne para que se saciem, vale tanto como a que se dá ao ministro, e a que é cortesã do papa. A vida das primeiras é mais suada. Como elas devem odiar as mães. Pobres mulheres? É uma vida como qualquer outra. A da esfregadeira, a da mulher a dias, a da amortalhadeira não pesa mais, não custa mais? Aquilo rende, aquilo ainda dá muito dinheiro. Porque não trabalham? É boa! Então quem me havia de aturar a mim, a ti, a todo o mundo, a todos os canalhas? Quem, não me dirás? Tua irmã? Tua mãe? O crime é um negócio, a Vida uma escravatura. A alma é escrava do crime, a carne é escrava do gozo. Morrem? Que temos nós com isso? Todos nós temos que morrer. Quem se lembra de uma prostituta que morre? Os corpos perdem-se na terra e no esquecimento como as blasfémias se perdem no ar. A Vida é uma grande cama onde existe sempre a plena orgia da carne. Lá passam as noites uma rameira abraçada a um poeta, um bêbado no peito de uma marquesa que empobreceu. É o panteão ignorado dessa carne infame que o homem chicoteou com beijos. E não sei, como de cada um, assim amassado em lágrimas, não floriu uma chaga, tanta peçonha e amargura eles continham. É a sarjeta onde se escoa a lama da Vida, para onde a terra baba a nata da podridão». In Albino Forjaz Sampaio, Palavras Cínicas, 1905, prefácio de Fred Teixeira, Wikipédia, 2011, Editora Guerra e Paz, ISBN 978-989-702-000-1.

Cortesia de EGPaz/Wikipedia/JDACT