quinta-feira, 23 de junho de 2016

História de um Casamento. Alexandre Borges. «Pois que Deus vos fez, senhora, fazer do bem sempre sempre o melhor e dele ser tão sabedora, em verdade vos direi: assim me valha o Senhor! Érades boa para Rei!»

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«(…) A rainha morreu em 1336, quando, uma vez mais, tentava fazer a paz em nome do filho. Desta feita, o adversário era Afonso XI, rei de Castela, seu neto e genro de Afonso. O belicoso rei português declarou-lhe guerra quando este fez menção de repudiar a mulher para assumir uma relação com Leonor Gusmão. Dona Isabel partiu em direcção à fronteira para tentar mediar uma conversação de paz, mas, aos 66 anos, não resistiu a dias de viagem sob o calor de Julho, morrendo quando se encontrava na zona de Estremoz.
Para cumprir o desejo que a mãe deixara expresso em testamento de ser enterrada em Santa Clara, Afonso IV mandou então ungir-lhe o corpo com perfumes, ervas e substâncias aromáticas que retardassem a decomposição do cadáver durante a longa viagem. Sete dias depois, sete dias sob o ardor do Verão, o povo de Coimbra era surpreendido pelo maravilhoso aroma que emanava do caixão da rainha. Assentando que se tratava dum milagre, o episódio tornar-se-ia o epitáfio perfeito à história duma mulher que há muito era olhada com veneranda admiração. Nos dias seguintes, surgiria toda a espécie de lendas em torno da Rainha Santa. Isabel de Aragão tinha ganho, definitivamente, contornos sobrenaturais.
No entanto, se nos quisermos distanciar dos incertos retratos da fé, veremos emergir aquilo que Isabel foi para lá de qualquer dúvida ou especulação: uma das mais influentes rainhas de toda a História da Península Ibérica. Como dissemos, extraordinariamente preparada desde criança para reinar, ligada por laços familiares a casas reais e cristandade e fazendo prova da sua cultura e inteligência, dona Isabel foi, acima de tudo, uma diplomata e um pilar de bom senso numa península onde reis e nobres ofereciam guerra por tudo e nada. Ao longo de toda a vida, Isabel nunca deixou de se corresponder intensamente com reis e papas, havendo cartas datadas e assinadas por ela de 16 localidades. Por esse meio, mantinha-se informada dos desenvolvimentos políticos de Portugal, Castela e Aragão, dava seguimento a uma política de casamentos que assegurasse a paz em vez da guerra, defendia os interesses dos descendentes, reclamava dívidas e geria o seu património.
Dinis não ignorava o talento diplomático da mulher e é por isso que nem tudo foi mau, afinal, no seu casamento: em momentos de crise política, aproximavam-se. Isabel foi a sua maior conselheira e a razão de Portugal ter gozado então duma rara e prestigiante posição: a de árbitro nos acordos e conflitos de toda a Península. Em benefício directo de Dinis, Isabel não conseguiu apenas pôr termo à guerra que o opunha ao filho; também fez o mesmo na que antes o opusera ao irmão. Foi ela quem ofereceu ao cunhado Armamar, Ourém e Sintra, terras que eram dela, a troco de uma rendição e exílio em Castela. E foi também ela, a descendente de uma longa linhagem de santas, quem conseguiu que o papa ouvisse as razões de um rei que era filho, sobrinho e neto de três excomungados, e se chegasse a um acordo de paz entre Portugal e Igreja, depois de mais de 60 anos de guerra. É por isso, pois, que, apesar da falta de amor, apesar de todas as lendas e apesar até de o rei repousar para sempre em Odivelas e a mulher em Coimbra, Dinis parece ter dedicado pelo menos uma trova à sua legítima Isabel de Aragão.

«Pois que Deus vos fez, senhora,
fazer do bem sempre sempre o melhor
e dele ser tão sabedora,
em verdade vos direi:
assim me valha o Senhor!
Érades boa para Rei!

E pois sabedes entender
sempre o melhor e bem escolher,
verdade vos quero dizer,
Senhora que sirvo e servirei:
pois Deus assim o quis fazer,
Érades boa para Rei!»

In Alexandre Borges, Histórias Secretas de Reis Portugueses, Casa das Letras, 2012, ISBN 978-972-46-2131-9.

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