terça-feira, 13 de agosto de 2019

A invenção da infância nas narrativas autobiográficas de Lya Luft. Sébastien Joachim. « .. as narrativas de Lya Luft serão confrontadas com os escritos autobiográficos de ilustres autores franceses e canadenses envolvidos num empreendimento similar…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Esta penetração da Literatura num campo de estudos que aparentemente pertence mais aos domínios da Educação, da Psicologia e da Sociologia, não significa que a Literatura teria solução que os outros campos de competência não possuem. Seu papel é outro. A literatura suscita questionamentos, fornece lenha para aquecer a reflexão sobre problemas, talvez para discernir na colocação desses problemas quais são as falsas e quais são as boas perguntas, o que o aproxima bastante da Filosofia, como salta aos olhos ao longo deste projecto até a Bibliografia (Tavoillot e Deschavanne, Ricoeur, Agamben, Wunemburger, Kowan que sintetiza a utopia de Agambén–Lyotard-Deleuze sobre a infância, além de Pierre Bayard que proporciona surpreendentemente a possibilidade de imaginar a infância como esta tríade; Philippe Sabot que defende como Bayard a tese de um pensamento virtual da Literatura). Os modelos elaborados pelos literários a partir das obras de arte providenciam uma delimitação, traçando as fronteiras do não dito, do impossível de dizer, circunscrevendo vazios que as Ciências Humanas não devem se apressar a preencher arbitrariamente. Uma visão prospectiva do objecto de estudo, uma infância não já catalogada: tal será a principal contribuição desta pesquisa. Não está garantida que ela esteja na pasta dos educadores, cientistas sociais, encarregados das políticas educativas do começo do terceiro milénio. Convém lembrar que a Literatura já foi procurada como interlocutora de alto gabarito por grandes personalidades do século XX como Sigmund Freud, Gaston Bachelard, Jean-Paul Sartre, Pierre Bourdieu...
A escritora brasileira Lya Luft tem a nossa preferência entre os bons autores de ficções autobiográficas. Assim como a obra instigante da francesa Amélie Northomb (pense, por exemplo, à Biografia da fome), suas obras não pertencem como tais à Literatura infanto-juvenil. Seus narradores protagonistas são infantes, sim, mas pensam grande e ambicionam ser escritores à imagem de sua autora. Este duplo traço e destino narrativo aparenta a escritora gaúcha a outros produtores de textos estrangeiros: Jacques Ferron (canadense), Nathalie Sarraute (francesa), Marguerite Duras, Jean-Paul Sartre, Georges Perec, Patrick Modiano. Propomos assinalar entre estes escritores estrangeiros e Lya Luft convergências e divergências.

Este projecto investigará as variantes estruturais da identidade e da socialização nos narradores pré-adolescentes das ficções autobiográficas de Lya Luft à luz da hipótese de um pensamento virtual singular da Literatura defendida no século XX por Sigmund Freud, Marcel Proust, Filósofos da Arte, e hoje pelo professor Pierre Bayard, da Universidade de Paris. Partindo disto, a pesquisa destacará a contribuição em valor cognitivo que se descobre na trilogia da autora gaúcha publicada em 2004 pela Editora Record: depois da sua respectiva primeira edição em 1996 (O rio do meio), em 1999 (O ponto cego), em 2002 (Mar de dentro). Nas três obras, serão analisadas por um lado a ontologia do ser criança e por outro lado as suas relações com a alteridade (o social, os artefactos, a natureza, o transcendente). Serão também apresentadas as circunstâncias socioculturais de emergência da forma autobiográfica escolhida pela autora. Pois tal forma, além de ter uma história, se revela um quadro de expressão onde a criança fictícia pode ocupar uma posição de primeiro plano em fala e acção, sobretudo pelo diálogo interior. Neste foro interno, ela sonha, pensa por conta própria, pesa os motivos de suas decisões, avalia criticamente os dizeres e fazeres dos adultos, enfim se libera do adulto-centrismo dominante na vida empírica. É um truísmo que a singularidade de uma obra de criação encontra-se melhor ressaltada mediante o cotejo com obras de feição aparentada.
Por este motivo, todas as vezes que será necessário, as narrativas de Lya Luft serão confrontadas com os escritos autobiográficos de ilustres autores franceses e canadenses envolvidos num empreendimento similar: com Enfance (1983) da francesa Nathalie Sarraute, com L´amélanchier (1970) do canadense Jacques Ferron. São ficções autobiográficas, cujo respectivo narrador é um personagem criança empenhado no duplo processo de autoidentificações e de socializações, e preocupado com o acto de escrever. Pela comparação entre textos de cultura diferente, penetramos no campo de uma interculturalidade susceptível de trazer um conhecimento mais universal e mais nuançado da identidade-criança, de lastrar uma definição mais criteriosa do aporte de Lya Luft como biógrafa e escriba da infância». In Sébastien Joachim, A invenção da infância nas narrativas autobiográficas de Lya Luft, Anais do IV Colóquio Internacional Cidadania Cultural, diálogos de gerações, 2009, Editora Eduepb, 2009, ISBN 217-6590-1.

Cortesia de EEduepb/JDACT