quarta-feira, 7 de agosto de 2019

O Amor nos Tempos de Cólera. Gabriel García Márquez. «Almoçava quase sempre em casa, fazia uma sesta de dez minutos sentado na varanda do quintal, ouvindo em sonhos as canções das criadas debaixo da copa das mangueiras…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Permanecia uma hora no seu gabinete, preparando a aula de clínica geral que ministrou na Escola de Medicina todos os dias de segunda a sábado, às oito em ponto, até à véspera da sua morte. Era também um leitor atento das novidades literárias que lhe mandava pelo correio o seu livreiro de Paris, ou das que lhe despachava de Barcelona seu livreiro local, embora não acompanhasse a literatura da língua castelhana com tanta atenção quanto à francesa. De qualquer forma nunca as lia pela manhã e sim depois da sesta durante uma hora, e à noite antes de dormir. Ao deixar o gabinete fazia quinze minutos de exercícios respiratórios no banheiro, defronte da janela aberta, respirando sempre para o lado em que cantavam os galos, que era onde estava o ar novo. Depois tomava banho, cuidava da barba e engomava o bigode num ambiente saturado de água-de-colónia da legítima de Farina Gegenüber, e se vestia de linho branco, com colete e chapéu mole, e botinas de cordovão. Aos oitenta e um anos conservava o jeito despreocupado e o espírito festivo de quando voltou de Paris, pouco depois da epidemia grande do cólera morbo, e o cabelo bem penteado com o repartido no meio continuava igual ao da juventude, salvo pela cor metálica. Tomava café em família, mas com um regime pessoal: uma infusão de flores de absinto maior, para o bem-estar do estômago, e uma cabeça de alho cujos dentes descascava e comia um por um, mastigando-os com método em fatias de pão caseiro, para prevenir os sufocos do coração. Só em raras ocasiões não tinha depois da aula algum compromisso relacionado com as suas iniciativas cívicas, ou com suas milícias católicas, ou com as suas promoções artísticas e sociais.
Almoçava quase sempre em casa, fazia uma sesta de dez minutos sentado na varanda do quintal, ouvindo em sonhos as canções das criadas debaixo da copa das mangueiras, ouvindo os pregões da rua, o fragor de motores com o fedor de óleos da baía, cujos eflúvios esvoaçavam por dentro da casa nas tardes de calor como um anjo condenado à podridão. Depois lia durante uma hora os livros recentes, em especial romances e estudos históricos, e dava lições de francês e de canto ao louro doméstico que há anos era uma atracção local. Às quatro saía para visitar os doentes, depois de tomar uma grande caneca de limonada com gelo. Apesar da idade, resistia à ideia de receber os pacientes no consultório, continuando a atendê-los nas respectivas casas, como sempre tinha feito, desde os tempos em que a cidade era tão doméstica que se podia ir a pé a qualquer lugar. Desde que voltara da Europa pela primeira vez andava no landô familiar com dois alazões dourados, mas quando este se tornou imprestável trocou-o por uma vitória de um cavalo só, e continuou a usá-la sempre com certo desdém pela moda, nessa época em que as carruagens começavam a desaparecer do mundo e as únicas que ainda perduravam na cidade só serviam para levar turistas a passeio e coroas ao cemitério. Embora se negasse à reforma, estava consciente de que só o chamavam para atender a casos perdidos, mas considerava que isso também era uma forma de especialização. Era capaz de saber o que tinha um doente só pelo seu aspecto, e cada vez desconfiava mais dos medicamentos comerciais e via com alarme a vulgarização da cirurgia. Dizia: o bisturi é a prova maior do fracasso da medicina. Achava que dentro de um critério estrito todo o remédio era veneno, e que setenta por cento dos alimentos correntes apressavam a morte. De qualquer maneira, costumava dizer em classe, a pouca medicina que se sabe só a sabem alguns médicos. Dos seus entusiasmos juvenis tinha passado a uma posição que ele mesmo definia como um humanismo fatalista: cada qual é dono da sua própria morte, e a única coisa que podemos fazer, chegada a hora, é ajudá-lo a morrer sem medo nem dor. Mas a despeito dessas ideias extremadas, que já eram parte do folclore médico local, seus antigos alunos continuavam a consultá-lo mesmo quando já eram profissionais estabelecidos, pois reconheciam nele o que então se chamava olho clínico». In Gabriel García Márquez, O Amor nos Tempos de Cólera, 1985, Publicações dom Quixote, 2002, ISBN 978-972-200-032-1.

Cortesia PdomQuixote/JDACT