quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Ana Karenina. Liev Tolstói. «Que é isto? Que é isto?, perguntou-lhe, mostrando o bilhete. Ao lembrar o ocorrido, o que mais lhe doía, como sempre acontece, não era tanto pelo facto em si, mas o modo como respondera à mulher»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Todas as famílias felizes se parecem, as infelizes não. Havia grande confusão em casa dos Oblonski. A esposa acabava de saber das relações do marido com a preceptora francesa, e comunicara-lhe que não podiam continuar a viver juntos. Durava já há três dias a situação, para tormento não só do casal mas também dos demais membros da família e da criadagem. Todos em casa se apercebiam de que já não havia razão alguma para manter aquele convívio, e que as pessoas que por acaso se encontrassem numa estalagem teriam talvez mais afinidades entre si. A esposa não saía dos seus aposentos, havia três dias que o marido não parava em casa; as crianças corriam de um lado para o outro, como que perdidas; a preceptora inglesa indispusera-se com a governanta e escrevera a uma amiga pedindo que lhe arranjasse outra colocação; na véspera, o cozinheiro abandonara a casa à hora do jantar; o cocheiro e a copeira tinham pedido que lhes fizessem as contas. No terceiro dia após a altercação, o príncipe Stepane Arkadievitch Oblonski, Stiva, como lhe chamavam os íntimos, acordou à hora do costume, ou seja, às oito da manhã, não no quarto conjugal, mas no escritório, deitado no divã de couro. Revolveu o corpo, gordo e bem tratado, sobre as molas do divã, como se quisesse adormecer de novo, e abraçou se ao travesseiro, apertando o contra a face. De repente, porém, sentou se e abriu os olhos. Como? Como era?, pensou, lembrando se do sonho que tivera. Como era aquilo? Ah, já sei! Alabine dava um jantar em Darmstadt, não, não era em Darmstadt; era na América. Sim, no sonho Darmstadt ficava na América. Alabine oferecia um jantar servido em mesas de cristal e as mesas cantavam Il Mio Tessoro! Talvez não fosse Il Mio Tesoro, mas qualquer coisa melhor, e havia umas garrafinhas, que afinal eram mulheres.
Os olhos de Stepane Arkadievitch brilharam alegremente, e, sorrindo, ficou-se a cismar. Sim, era muito bonito, estava muito bem. E havia muito mais coisas magníficas, mas não podia descrevê-las nem por palavras nem por pensamentos, nem mesmo desperto como estava. Ao perceber um raio de luz que penetrava por um dos lados da cortina, retirou alegremente os pés do divã, procurando com eles, no chão, as chinelas de couro dourado que a mulher lhe oferecera no ano anterior (presente de aniversário) e, costume seu de há nove anos, sem se levantar estendeu o braço para o roupão, geralmente dependurado à cabeceira da cama. Então lembrou-se subitamente do motivo por que não dormira no quarto conjugal; o sorriso desapareceu-lhe do rosto, e franziu as sobrancelhas. Ai, ai, ai!, queixou-se, ao lembrar-se do que sucedera. De novo se lhe representavam na memória todos os pormenores da altercação com a mulher, a posição insolúvel em que se encontrava e as culpas que tinha, e isto era o que mais o atormentava.
Não! Não me perdoará, não pode perdoar-me. E o pior é que sou o causador de tudo, embora não seja culpado. Essa a tragédia, pensava. Ai, ai, ai!,repetia, desesperado, ao recordar os momentos mais dolorosos da discussão. O momento mais desagradável fora aquele em que, ao regressar do teatro, alegre e satisfeito, com uma bonita pêra para a mulher, não a encontrou nem no salão nem no escritório, coisa que o surpreendeu, mas no quarto de dormir, na mão o maldito bilhete que tudo lhe revelara. Dolly, a mulher sempre diligente, cheia de preocupações e tão limitada, segundo pensava Oblonski, sentara-se com o bilhete na mão e olhava-o num misto de cólera, horror e desalento. Que é isto? Que é isto?, perguntou-lhe, mostrando o bilhete. Ao lembrar o ocorrido, o que mais lhe doía, como sempre acontece, não era tanto pelo facto em si, mas o modo como respondera à mulher. Naquele momento sucedeu-lhe o que sucede a qualquer pessoa obrigada a confessar algo vergonhoso. Não soube encontrar expressão adequada à situação. Em vez de ofender-se, negar, justificar-se, pedir perdão ou mesmo mostrar indiferença, qualquer coisa teria sido melhor, apareceu-lhe de súbito, na fisionomia, involuntariamente (reflexos cerebrais pensou Stepane Arkadievitch, que era dado à fisiologia), o sorriso habitual, bondoso e estúpido. Não podia perdoar-se sorriso tão absurdo. Diante desse sorriso, Dolly estremeceu, como se sentisse uma dor física, e, com o seu arrebatamento peculiar, rompeu numa torrente de palavras duras, acabando por sair, correndo, do quarto em que estava. Desde então não mais quisera ver o marido. Aquele estúpido sorriso é que teve a culpa de tudo. Mas que fazer? Que fazer?, perguntava-se Stepane Arkadievitch, sem encontrar resposta». In Liev Tolstói, Ana Karenina, 1873, Relógio D'Água, 2007, ISBN 978-972-708-923-9.

Cortesia de RdeÁgua/JDACT