terça-feira, 20 de agosto de 2019

O Padre Negro. Edgar Wallace. «Acenou ao homem para que desaparecesse e pôs-se a estudar o livro escrito a negro que chegara da Alemanha naquela manhã…»

Cortesia de wukipedia e jdact

«Thomas! Sim, milorde. Thomas, o criado, aguardou com ar de interesse enquanto o homem pálido que se encontrava atrás da grande secretária da biblioteca retirou um pequeno maço de notas de banco. A caixa de aço de onde saíram estava cheia de diversas notas de banco numa terrível confusão. Thomas, disse com ar ausente. Sim, milorde. Põe este dinheiro naquele envelope, esse não, pateta, no cinzento. Está endereçado? Sim, milorde. Cherr Lubitz, Frankforterstrasse, 35, Leipzig. Fecha-o, vai aos correios e regista-o. Mr. Richard está no gabinete? Não, milorde, saiu há uma hora. Harry Alford, o 18º conde de Chelford, suspirou. Estava já avançado na casa dos trinta anos, tinha o rosto esguio e pálido de estudante, o cabelo negro realçava mais a palidez da pele. A biblioteca onde trabalhava ficava num compartimento de tecto alto, cujas paredes estavam divididas por um corredor largo aonde se chegava através de uma escada circular metálica. Desde o tecto até ao chão, as paredes estavam completamente cobertas de prateleiras, apenas com uma excepção. Por cima da enorme lareira havia um quadro grande representando uma bela mulher. Ninguém que conhecesse o conde poderia se enganar quanto à relação existente entre ele e aquela beleza de olhos selvagens. Era a mãe dele; tinha as mesmas feições delicadas, o mesmo cabelo escuro, asa de corvo, olhos insondáveis. Lady Chelford fora a mais famosa debutante da sua época e o seu fim trágico tinha sido a sensação do começo do século XX. Não havia qualquer outro retrato seu na sala. Os olhos dele pousaram no quadro. Para Harry Alford, Fossaway Manor, apesar de toda a sua beleza e encanto, não era cofre suficientemente bom para tal jóia.
O criado, de sóbrio terno preto e cabelos já brancos, inclinou-se. Mais nada, milorde? Mais nada, respondeu o conde gravemente. No entanto, quando o homem se dirigia sem ruído para a porta... Thomas! Ouvi-o falar num acidente quando passou sob a minha janela com Filling, esta manhã?... Ele estava falando sobre o Padre Negro, milorde. O rosto pálido contraiu-se numa careta. Mesmo à luz do dia, com os raios de Sol passando pelas janelas e se reflectindo em arabescos púrpura, azuis e ametista, a simples menção ao Padre Negro punha-lhe o coração aos saltos. Qualquer homem ao meu serviço que fale sobre o Padre Negro será imediatamente despedido. Diz isso aos teus colegas, Thomas. Um fantasma? Meu Deus! Estão todos doidos? O seu rosto estava agora congestionado, pequenas veias sobressaíam-lhe nas têmporas e, sob a onda de cólera, os seus olhos negros pareciam desaparecer no rosto. Nem uma palavra, entendeu? É mentira! Uma mentira desprezível para dizer que Fossaway está assombrada. É uma brincadeira. E chega!
Acenou ao homem para que desaparecesse e pôs-se a estudar o livro escrito a negro que chegara da Alemanha naquela manhã. Uma vez fora da sala, Thomas pôde arriscar-se a fazer uma careta. Foi só durante alguns segundos e depois retomou a seriedade. Devia haver quase mil libras naquela caixa, e Thomas uma vez cumprira uma pena de dez anos por um décimo daquela soma. Até mr. Richard Alford, que sabia a maior parte das coisas, desconhecia este interessante facto. Thomas tinha uma carta para escrever, pois mantinha uma lucrativa correspondência com alguém que tinha um interesse especial em Fossaway Manor, mas primeiro deveria relatar a conversa a mr. Glover, o mordomo. Não me interessa o que o conde diz (e porque havia ele de o dizer a um criado e não a mim, não entendo); há um fantasma e já muita gente o viu. Eu não passaria a pé em Elm Drive durante a noite nem por cinquenta milhões de libras.
O homem abanou a cabeça que o tempo já tornara grisalha. E o conde também acredita. Quem me dera que ele tivesse casado. Sempre seria mais sensato. E aí víamo-nos livres de mr. Blooming Alford, hem, mr. Glover. O mordomo fez um ruído com o nariz. Há os que gostam e os que não gostam, disse o mordomo. Nunca trocamos uma palavra azeda. Thomas, estão batendo à porta. Thomas apressou-se a abrir a enorme porta. Havia uma moça à entrada. Era bonita de uma forma ousada, lábios vermelhos, olhos brilhantes e vestia luxuosamente. Thomas reconheceu-a. Bom dia, miss Wenner..., mas que surpresa! O conde está, Thomas? O criado contraiu os lábios em sinal de dúvida: ele está, menina, mas receio não poder levá-la até lá. Não me culpe, são ordens de mr. Alford. Mr. Alford, repetiu ela. Quer dizer que venho de propósito de Londres e não posso ver lorde Chelford? Thomas continuou com a mão na porta. Gostava da moça que, enquanto fora secretária do conde e, nunca se dera ares de grande importância (o pecado imperdoável dos criados de dentro) e sempre tivera um sorriso para o elemento mais insignificante do pessoal. Tê-la-ia deixado entrar e pensava que Sua Senhoria ficaria satisfeito por vê-la, mas no seu espírito apareceu-lhe a imagem de Dick Alford, um homem de poucas falas, que não só era capaz de o pôr na rua, como também de o fazer aos pontapés.
Tenho muita pena, menina, mas, como sabe, ordens são ordens. Percebo, disse ela. Sou posta fora do que poderia ter sido a minha casa, Thomas. Ele tentou mostrar-se compreensivo e conseguiu fazer uma careta de imbecilidade. Ela sorriu-lhe, apertou-lhe graciosamente a mão e afastou- se. Miss Wenner, relatou Thomas, aquela que Alford despediu porque pensou que o conde estava sendo carinhoso demais com ela... A campainha da biblioteca tocou naquele momento e Thomas apressou-se a responder à chamada. - Quem era a senhora que vi pela janela? Miss Wenner, milorde. Uma nuvem passou pelo rosto de Harry Alford. Disse-lhe para entrar? Não, milorde, mr. Alford deu ordens... Sim, claro. Tinha-me esquecido. Talvez tenha razão. Obrigado. Puxou o castiçal para junto dos olhos, pois mesmo durante o dia trabalhava à luz artificial, tal era a escuridão na biblioteca, e continuou a analisar o livro. Contudo, o seu espírito não estava totalmente concentrado no trabalho. Levantou-se e caminhou na biblioteca para cima e para baixo, as mãos cruzadas e o rosto descaído. Deteve-se ante o retrato da sua mãe, suspirou e regressou à mesa. Havia um parágrafo que recortara de um jornal londrino e leu-o pela terceira vez, não muito desagradado pelo facto pouco habitual de se ver o objecto de um comentário de jornal, no entanto irritado pelo assunto que provocara a notícia». In Edgar Wallace, O Padre Negro, 1926/1927, Publicações Europa-América, 1985, ISBN 978-972-101-690-3.

Cortesia PEAmérica/JDACT