segunda-feira, 26 de agosto de 2019

A Rainha Descalça. Ildefonso Falcones. «Todos, quase sem excepção, ofereciam humildes habitações de um ou no máximo dois quartos, num dos quais, quando não estava no próprio pátio ou ruela…»

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Porto de Cádiz. 7 de Janeiro de 1748
«(…) O bairro sevilhano de Triana ficava do outro lado do rio Guadalquivir, fora das muralhas da cidade. Comunicava-se com a cidade através de uma velha ponte muçulmana construída sobre dez barcaças ancoradas no leito do rio e unidas a duas grossas correntes de ferro e vários cabos estendidos de margem a margem. Aquele arrabalde, que havia sido baptizado como guarda de Sevilha pela função defensiva que sempre havia tido, alcançou a sua época de esplendor quando Sevilha monopolizava o comércio com as Índias; os problemas de navegação pelo rio aconselharam, em inícios do século, trasladar a Casa de Contratação a Cádiz e implicaram uma considerável diminuição da sua população e o abandono de numerosos edifícios. Os seus dez mil habitantes concentravam-se numa limitada superfície de forma alongada na margem direita do rio, que se atravessava no seu outro limite pela Cava, o antigo fosso que em épocas de guerra constituía a primeira defesa da cidade e que se inundava com as águas do Guadalquivir para converter o arrabalde numa ilha. Para além da Cava viam-se alguns esporádicos conventos, ermidas, casas e a extensa e fértil veiga trianeira.
Um desses conventos, na Cava Nueva, era o de Nossa Senhora de la Salud, de monjas mínimas, uma humilde congregação de religiosas dedicada à contemplação e à oração através do silêncio e da vida quaresmal. Atrás das Mínimas, para a rua de San Jacinto, no pequeno beco sem saída de San Miguel, apinhavam-se treze cortiços em que por sua vez se amontoavam cerca de vinte e cinco famílias. Vinte e uma delas eram ciganas, compostas por avós, filhos, tias, primos, sobrinhas, netos e um que era bisneto; as vinte e uma se dedicavam à forja. Existiam outras ferrarias no arrabalde de Triana, a maioria em mãos ciganas, as mesmas mãos que já na Índia ou nas montanhas da Arménia, séculos antes de emigrar para a Europa, haviam convertido o seu ofício em arte. No entanto, San Miguel era o centro nevrálgico da ferraria e da caldeiraria trianeiras. No beco se abriam os antigos cortiços construídos durante a época de esplendor do arrabalde no século XVI: alguns não eram mais que simples ruelas sem saída de míseras casinhas alinhadas e defrontadas de um ou dois andares; outros eram edifícios, amiúde intrincados, de dois e três andares dispostos ao redor de um pátio central, cujos andares superiores se abriam para ele através de corredores altos e grades de ferro forjado ou de madeira. Todos, quase sem excepção, ofereciam humildes habitações de um ou no máximo dois quartos, num dos quais, quando não estava no próprio pátio ou ruela como serviço comum a todos os vizinhos do cortiço, havia um pequeno nicho para cozinhar com carvão. As pias para lavar e as latrinas, se as havia, estavam colocadas no pátio, à disposição de todos eles.
À diferença dos outros cortiços sevilhanos ocupados durante o dia só pelas mulheres e pelas crianças que brincavam nos pátios, os dos ferreiros trianeiros estavam durante toda a jornada de trabalho, pois tinham instaladas suas fráguas no térreo. O constante repicar do martelo sobre a bigorna escapava de cada uma das ferrarias e se unia na rua numa estranha algaravia metálica; a fumaça do carvão das fráguas, que amiúde saía pelo pátio dos cortiços ou pelas mesmas portas daquelas modestas oficinas sem chaminé, era visível de qualquer ponto de Triana. E ao longo do beco, envoltos na algaravia e na fumaça, homens, mulheres e crianças iam e vinham, brincavam, riam, conversavam, gritavam ou discutiam. Contudo e apesar do tumulto, muitos deles emudeciam e se detinham com os sentimentos à flor da pele às portas dessas fráguas. Às vezes se distinguiam um pai que retinha o filho pelos ombros, ou um velho de olhos entrefechados, ou várias mulheres que reprimiam um passo de dança ao ouvir os sons do martinete: um canto triste acompanhado apenas pelo monótono bater do martelo a cujo ritmo se compassava; um canto próprio que lhes havia seguido em todos os tempos e lugares. Então, por obra dos quejíos dos ferreiros, o martelar se convertia numa maravilhosa sinfonia capaz de arrepiar os pelos.
Naquele 2 de Fevereiro de 1748, festa da Purificação de Nossa Senhora, os ciganos não trabalhavam nas suas ferrarias. Poucos deles iriam à igreja de São Jacinto e da Virgem da Candelária para benzer as velas com que iluminavam o seu lar, mas, apesar disso, tampouco queriam problemas com os piedosos vizinhos de Triana e menos ainda com sacerdotes, frades e inquisidores; tratava-se de um dia de folga obrigatório.
Guarda a moça dos desejos dos payos, advertiu uma voz rouca. As palavras, em caló, a língua cigana, ressoaram no pátio que dava para o beco. Mãe e filha detiveram os seus passos. Nenhuma delas mostrou surpresa, embora não soubessem de onde vinha a voz. Percorreram o pátio com o olhar até que Milagros distinguiu na penumbra de uma esquina o reflexo prateado da abotoadura da jaquetinha curta azul-celeste do seu avô. Achava-se de pé, erguido e parado, com o cenho franzido e o olhar perdido, como era habitual nele; havia falado sem deixar de morder um pequeno charuto apagado. A moça, de catorze esplendorosos anos, sorriu-lhe e girou com graça; sua longa saia azul e a sua anágua, seus lenços verdes revolutearam no ar entre o tilintar de vários colares que lhe pendiam do pescoço». In Ildefonso Falcones, A Rainha Descalça, 2013, tradução de Rita Custódio e Alex Tarradellas, Bertrand Editora, Lisboa, 2014, ISBN 978-972-252-815-3.

Cortesia BertrandE/JDACT