quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Quando Lisboa Tremeu. 1755. Domingos Amaral. «Olhou à sua volta. Não conseguia ver nada, só entulho. Na escuridão, deduziu que estaria dentro de casa. Com o braço saudável retirou pedras e madeiras de cima de si…»

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«(…) Tal como irmã Margarida, também o capitão Hugh Gold ficou bastante atordoado nos minutos que se seguiram ao terramoto. No caso dele, pode mesmo dizer-se que aconteceu quase um milagre: caíra agarrado ao varandim ao mesmo tempo que o seu prédio se desmoronava, e sobrevivera. Num estado próximo da inconsciência, Hugh Gold sabia que algo verdadeiramente horrível acontecera, mas o seu cérebro recusava funcionar e mergulhou numa letargia profunda. Pela sua mente correram imagens descontínuas: o jantar da véspera, em casa de um amigo do embaixador inglês; a sua mulher a andar na rua; convivas a rirem, contando piadas; a criada aos gritos; pratos de carnes e garrafas de vinhos; a senhora Locke, nua nos seus braços. Parecia sonhar... Mas, de repente, a dor no braço cresceu de intensidade e acordou daquele limbo onde vagueara, desligado da realidade. Estava coberto de pedras, madeiras, roupas, poeira, uma amálgama de detritos, mas escapara vivo àquela manifestação de fúria destrutiva da natureza. Não conseguia perceber como. Lembrava-se vagamente de se ter agarrado ao varandim, e depois tudo ficara escuro e perdera a consciência. Não sabia o que se tinha passado, quando tempo havia decorrido, nem onde estava. As dores no braço eram violentas. Não se conseguia mexer sem sentir uma enorme dor, era como se estivessem a rasgar-lhe as carnes e os ossos do braço. Fechou os olhos e cerrou os dentes, lutando contra a dor, que passado algum tempo pareceu acalmar.
Olhou à sua volta. Não conseguia ver nada, só entulho. Na escuridão, deduziu que estaria dentro de casa. Com o braço saudável retirou pedras e madeiras de cima de si, e tentou levantar-se. O esforço cansou-o. Já habituado ao escuro, reconheceu bocados da sua casa: um guardanapo, umas panelas, duas cadeiras estropiadas, um pedaço de cerâmica do seu lavatório. Era como se estivesse enterrado naqueles vestígios domésticos, que uma hora antes faziam sentido, mas agora eram apenas uma barreira à sua mobilidade. Contudo, depressa compreendeu que, se afastasse umas traves, conseguia sair dali. Com o braço bom demorou alguns minutos a removê-las, e depois avançou, sempre curvado. Sem aviso, chocou com a criada e gritou, assustado. Estava numa posição estranha: uma perna esticada para cima, presa numa trave, a outra puxada para baixo, tapada por várias pedras; o tronco torcido para trás e para a esquerda, como se fosse apanhar qualquer coisa do chão, e a cabeça tombada para o lado contrário. Morta. O inglês permaneceu uns momentos a admirar o cadáver da criada. Depois, afastou-se, pois nada podia fazer por ela. Minutos mais tarde esquecera-se já dela, e tentou furar a parede com um pedaço de madeira. Para seu espanto, o material não resistiu, e rapidamente abriu um espaço suficientemente largo para passar. Olhou através dele, mas nada viu devido à penumbra. Com dificuldades, e nova dor lancinante no braço, forçou-se a atravessar o buraco. Enfiou primeiro os pés, e só depois a cintura, os braços e a cabeça. Quando já estava do outro lado, deixou-se cair e rebolou pelo chão, o que o deixou tonto. Para sua grande surpresa, ouviu um grito: Virgem santíssima!
A autora da exclamação era uma mulher gorda e baixa, que estava abraçada a outra mulher, muito mais velha. Reconheceu-as, eram as vizinhas da casa ao lado. Em pânico, os olhos de ambas rebolavam, como se estivessem com convulsões de medo. A octogenária emitia uma lengalenga, da qual Gold só compreendeu o fim: Deus tenha piedade de nós, Deus tenha piedade de nós... Ao ouvi-la, a mais nova gemeu: misericórdia, misericórdia. Esconderam a cara com as mãos em aflição. O capitão Hugh Gold não lhes conseguiu arrancar uma palavra, e dirigiu-se ao que parecia ser uma porta, deixando-as onde as encontrara. Aquele prédio não fora tão massacrado como o seu, e momentos depois estava na rua, ou no que antes tinha sido a rua onde morava». In Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, O Dia de Todos os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2010, ISBN 978-972-461-986-6.

Cortesia de CdasLetras/JDACT