sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Maya. Jostein Gaarder. «… répteis de idade avançada vivem em tocas subterrâneas, muitas vezes compartilhadas com algum petrel. Podem medir até setenta centímetros de comprimento…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Vê melhor, quem vê por último
«(…) Hoje em dia, tem-se mais fé em venenos, vírus e formas distintas de esterilização; noutras palavras, na guerra química e biológica. Mas não se compõe uma nova cadeia trófica num abrir e fechar de olhos, e até se pode perguntar se isso é factível. Por outro lado, é triste verificar como é fácil acabar com o equilíbrio ecológico construído pela natureza durante muitos milhões de anos. Mas a insensatez do mundo não tem mais limites nem fronteiras. Penso nessa arrogante insensatez dos sabichões, uma espécie de miopia do engenho, tão maravilhosamente subdesenvolvida entre aborígines, maoris e melanésios, antes de eles se transformarem em apêndices do homem branco. Penso na insensatez da cobiça e do lucro. Hoje em dia se empregam eufemismos como globalização e acordos comerciais. Isso implica que a comida já não se define como alimento, e sim como mercadoria. Onde outrora as pessoas podiam comer o que colhiam nos seus campos, hoje se cultivam cada vez mais produtos inúteis, a que somente os países mais ricos do mundo podem ter acesso. Não vivemos mais da natureza. Foi-se o tempo dos paraísos.
De resto, V conhece de sobra o meu velho interesse pelos répteis. Foi um fascínio pueril pela vida neste planeta há cem ou duzentos milhões de anos que me tornou biólogo, e isso muito antes da moda dos dinossauros, que surgiu por volta de dez ou quinze anos atrás. Eu queria compreender por que todos esses répteis altamente especializados se extinguiram de repente. Além disso, obcecava-me uma pergunta que desde então nunca me saiu da cabeça: o que teria acontecido se os dinossauros não se tivessem extinguido? O que teria acontecido nesse caso com todos esses mamíferos parecidos com os musaranhos, dos quais V e eu descendemos? Mas sobretudo: o que teria acontecido com os dinossauros? Na Oceânia, tive a oportunidade de estudar várias espécies antigas de répteis. Muito especial foi o arcaico tuatara, encontrado nalgumas ilhas isoladas da Nova Zelândia. Embora arriscando-me a ofendê-la um pouco, atrevo-me a confessar que experimentei um sentimento quase religioso ao contemplar um dos vertebrados vivos mais antigos se desenvolver nos restos dos velhos bosques do antigo continente da Gonduana. Esses répteis de idade avançada vivem em tocas subterrâneas, muitas vezes compartilhadas com algum petrel. Podem medir até setenta centímetros de comprimento, têm uma temperatura corporal singularmente baixa, nove graus, e podem viver mais de cem anos. Quando V o vê de noite, é como se retrocedesse ao Jurássico, na época em que a Laurásia se separou da Gonduana, e os grandes dinossauros mal haviam começado a se desenvolver. Era então que os rincocéfalos se distinguiam das outras famílias de sáurios como uma família de répteis pouco numerosa, mas sumamente resistente. O seu único representante vivo, o tuatara, conservou-se espectacularmente inalterado por cerca de duzentos milhões de anos.
Preciso tomar fôlego, Vera. O tuatara não é um facto menos notável do que se, de repente, alguém encontrasse um arqueópterix vivo numa dessas ilhas isoladas. É certo que algo parecido ocorreu no Leste da África do Sul, no dia 22 de Dezembro de 1938, quando um barco pesqueiro pegou nas suas redes um crossopterígio, o chamado latimeriídeo. O grupo de peixes com aletas em forma de ramalhete, tão importante para a evolução, simplesmente porque deles descendemos, V e eu, e todos os outros vertebrados terrestres, só estava documentado por achados fósseis até ao Natal de 1938, e se acreditava que havia se extinguido fazia quase cem milhões de anos. Tanto o peixe azul como o tuatara merecem a denominação de fósseis vivos, e eu talvez deva acrescentar um por enquanto. Não faz muitos anos, o tuatara se espalhava por amplas zonas da Nova Zelândia». In Jostein Gaarder, Maya, Editorial Presença, colecção Grandes Narrativas, 2001, ISBN 978-972-232-737-4

Cortesia de EPresença/JDACT