quarta-feira, 30 de março de 2016

A Mentira Sagrada. Luís Miguel Rocha. «O interior tinha um pé-direito de dois metros e meio de altura, o suficiente para albergar qualquer terráqueo na posição vertical. As luzes emitiam um brilho branco uniforme por todo o espaço não deixando nada encoberto»

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Vaticano. 19 de Abril de 2005
«(…) Quanto menos se sabe mais se crê. Sempre assim foi e assim será até ao final dos tempos. Noutras épocas, o que hoje são fenómenos da Natureza comummente conhecidos e explicados com a ajuda eficaz da ciência eram identificados como a ira de Deus, no caso das trovoadas e terramotos, e um prenúncio do fim do mundo se estivéssemos a falar de eclipses. Era ver os crentes ajoelhados em todos os altares, privados ou públicos, a apelar a Santa Bárbara, São Cristóvão e outros que tais para que intercedessem junto do Criador, Deus Nosso Senhor, Alá, Javé, cada um que escolhesse a oferta que melhor o servisse, para aplacar a ira Dele, quem quer que Ele fosse. E nos tempos anteriores a esses santos, quando eles ainda não eram santos, nem tinham nascido como os demais mortais, ou não eram ainda conhecidos como Deus ou Alá ou Javé, intercedia-se através de outros santos e outros deuses que se perderam nas areias do tempo e que ficaram esquecidos para sempre. E o mundo continuou sempre a rodar, sabe-se hoje, sobre si mesmo e sobre o sol, pouco interessado nas crenças de quem o habita. O mundo tão-pouco se importava com este homem que descia vinte degraus, bem agarrado aos corrimões, de ambos os lados. A idade não lhe perdoou. As rugas impressas no rosto, vividas, como vergões de chicote que não deixavam esquecer as agruras dos dias que foram. O resto o corpo encarregava-se de lembrar. Uma perna presa que teimava em não corresponder às ordens do dono, olhos que enxergavam mal com a ajuda dos óculos bastante graduados. Defeitos de uma máquina já muito usada e abusada que não teve cuidados quando devia. Um passo de cada vez para descer ao subterrâneo que mandou construir nos idos de 1950 por cinco bons homens, haviam feito um poço de elevador que permaneceu, justamente assim, até hoje, um simples poço sem elevador. Considerou mais seguro apenas uma entrada, a mesma saída, vinte degraus para baixo, os mesmos para cima. Não ponderou a velhice e o tolher dos membros. Nem queria pensar nos vinte degraus que teria de subir, pois se ainda ia a meio de os descer. Não era um percurso que fizesse diariamente. Apenas uma vez por outra, uma vez por ano, sempre na mesma data, 8 de Novembro, símbolos da história de cada um que ninguém deve invadir. Questões de privacidade. O subterrâneo ficava a cerca de 150 metros da casa grande, rodeado por árvores frondosas, que evidenciavam a crespidão do Outono. A entrada ficava dentro de uma barraca de madeira que, supostamente, os caseiros haviam usado para acolher os utensílios de trabalho em tempos idos. Parecia abandonada, de facto, cheia de pó e de teias de aranha, provavelmente habitada por outros bichos que não gostavam de aparecer a humanos de costas vergadas e arfantes. Havia uma bancada no centro da barraca que disfarçava a entrada para o subterrâneo. Era menos pesada do que aparentava. Tanto que foi mais fácil para o idoso desviá-la do que descer as escadas. Depois de as descer o percurso era curto. Cerca de vinte metros até à porta do cofre, uma estrutura de metal com meio metro de espessura e trancas do tamanho das pernas de um homem. Há sessenta anos teria de enfiar uma chave em determinado local para activar o maquinismo de abertura. Foi assim durante algumas décadas, mas com os avanços tecnológicos implementara uma fechadura totalmente electrónica. Abeirou-se de um teclado alfanumérico e marcou um código de oito letras. O código pertencia a quem devia, dizia o visor da máquina. Identidade Reconhecida Ben Isaac 8 NOV 2010 21h13m04 Acesso Permitido. O mecanismo iniciou a operação de abertura que, apesar de se tratar de uma sequência lógica de soltura de fechos, soava a Ben Isaac somente como ruídos desconexos que provinham do interior da estrutura. As duas manivelas exteriores rodaram somente no fim do processo e a pesada porta abriu-se para fora com uma expiração de ar como se de um organismo vivo se tratasse. Nesse momento, também automaticamente, as luzes fluorescentes acenderam-se, uma a uma, iluminando o interior do cofre. Cem metros quadrados de paredes em pedra com 80 centímetros de espessura. O interior tinha um pé-direito de dois metros e meio de altura, o suficiente para albergar qualquer terráqueo na posição vertical. As luzes emitiam um brilho branco uniforme por todo o espaço não deixando nada encoberto. Já bastava o lugar, em si, ser obscuro, algumas dezenas de metros acima, na barraca abandonada no meio das árvores frondosas, a 150 metros da casa grande. As paredes mostravam a pedra granítica fria, dura, emprestando alguma frescura à sala fechada. O chão era de ladrilho alvacento, como as luzes, que, em conjunto, criavam um ambiente diáfano. Não havia nada encostado às paredes. Nuas. Apenas três móveis escuros no centro da sala. Mostruários. Encimados por três vidros que impediam o oxigénio de entrar para o interior. No canto inferior esquerdo de cada um dos mostradores, um visor indicava a temperatura de 20 °C. Em cada um dos móveis um documento, dois num deles. Dois pergaminhos e dois ofícios mais recentes, da esquerda para a direita. Ben Isaac dirigiu-se ao móvel mais à esquerda, que continha um pergaminho e fitou-o». In Luís Miguel Rocha, A Mentira Sagrada, Porto Editora, 2011, ISBN 978-972-004-325-2.

Cortesia de PEditora/JDACT