terça-feira, 8 de março de 2016

Um Livro sobre Amor. Paula Gicovate. «Muitas das coisas são rotineiras e não possuem grande relevância e, talvez por isso, parecem tão comuns e palpáveis, como se todos nós vivêssemos os nossos anseios e amores»

Cortesia de wikipedia (Ernst Hackwell)

«Para o primeiro, para os que quebraram o meu coração, os que mostraram as músicas e os livros, para quem eu escrevi milhares de palavras em segredo, para o que me colocou no mundo, para o que me ensinou sobre a vida, para os que vieram antes, para os que virão depois».



«Ele disse que, ao contrário do que eu pensava, eu nunca seria mulher de um homem só. Nunca de um homem só. (Nem dele)»

«Olhou para mim, olhei para o lado. Como descobriria depois, odeio ser encarada. Detesto que me olhem nos olhos, embora fale com as pessoas como se pudesse enxergá-las por dentro. Ele olhou-me, tirou a franja do meu rosto com a mão, pediu desculpas por isso, mas disse que estava dando agonia ver-me pela metade. Perguntou porque bebia cachaça, e falei que era porque gostava. Ele disse que isso bastava e pediu uma também. Não se lembrava do meu nome, disse. Mas não havia perguntado. Quis saber quantos anos eu tinha e interrompeu-me antes que eu respondesse. Perguntou se eu morava perto e descobriu que sim, moro a duas ruas do seu hotel. Viu o prato que eu pedi chegar e a minha primeira garfada nervosa, morta de fome depois de um dia inteiro. Olhou nos meus olhos e disse que achava incrível jantar com uma mulher que suspirava enquanto comia. Enquanto é comida também, pensei. Depois que fosse embora, e me deixasse com a droga deste pacote completo, de olhares e desculpas banais, por encostar em você em qualquer lugar, e o te… absoluto e a vontade de te morder, de prender com as pernas e falar baixinho, que se deixasse eu invadiria a sua vida, sorriria pra mim com essa cara de lenhador de história infantil, meio ogro, meio príncipe, e iria embora, levando um pedaço do meu coração em cada mão. Quando chegasse lá, me escreveria uma carta dizendo: por favor, chérie, não se apaixone por mim. E é apenas por isso que às vezes eu fico em silêncio. Nesse entretanto, ele veio. E disse que trocou de estado para me ver, que deixou o livro para me ver, que pegou um avião para me ver, sem me perguntar o que eu estaria deixando para trás para vê-lo. Não muita coisa, na verdade, mas incomodou-me um pouco o facto dele se vangloriar tanto por ter vindo. Isso é sinal de que eu merecia de alguma forma? Na verdade o que eu quero é que ele me admire, que goste do que escrevo, ao invés de ser mais uma bonitinha que valha a pena uma viagem interestadual. Não sei. Sei que ele veio e não mudou muita coisa por aqui. Foi embora num outro avião e eu que me virasse com o que tivesse sobrado para mim, além de garrafas vazias, cigarros e papéis escritos e amassados pelos quartos da casa. Writer’s bullshit, e é o que me toca, não preciso falar de novo a espécie de clichê no qual me enquadro. No clichê que você me aprisionou.
É sábado de manhã e eu acabei de tomar o café. A vizinha faz barulhos como sempre, a casa precisa de cortinas, pratos limpos e definitivamente não precisa de barulho. Sábado de manhã é o único momento em que eu consigo ver a luz sépia que entra pela janela da sala e eu não quero nada além disso. É sábado e eu posso escutar música sem os auscultadores, e coloco Billie para cantar Blue Moon, porque me disseram que hoje vai aparecer no céu a maior lua dos últimos 20 anos. É sábado e eu finalmente tenho tempo para pensar em como seria. Nós dois juntos. Porque me permito a saliência de criar uma vida à distância e vejo-o acordando cedo para correr e me deixando na cama, e depois me acordando p’ra visitar os seus pais, e me levando na feira daquela rua e para aquele restaurante polonês all you can eat. Me deixará sozinha à noite para escrever enquanto eu já teria alguns amigos na cidade e sairia para dançar. O meu livro acontecendo aos poucos e você fazendo cara de surpresa por eu de facto ter algumas amigas que consideram alguma coisa nesta literatura menor que é falar de si mesma enquanto você não entende o quanto de material você me dá e o quanto este nosso colchão atirado para o chão do quarto parece mais ficcional do que qualquer história inventada. Não seríamos felizes. Eu ter-me-ia apaixonado por você de novo (como da primeira vez, dois anos atrás), um homem que não sabe amar, mas que merece um afago por ter tentado, e eu amaldiçoando o seu passado, que amaldiçoou no mesmo no dia em que ela te deixou». In Paula Gicovate, Este é um Livro sobre o Amor, Editora Guarda-Chuva, (Ernst Hackwell), 2014, ISBN 978-859-953-734-2.

Cortesia de EGChuva/JDACT