quinta-feira, 24 de março de 2016

A Princesa Guerreira. Barbara Erskine. «Jess, professora em Londres, é vítima de um ataque que não consegue recordar-se. Tudo indica que o agressor é um homem que a conhece bem. Assombrada pelo menos e pela suspeita…»

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«As cortinas estavam abertas. Vozes enchiam-lhe o pensamento. Uma criança perdida, a chorar; duas crianças. Três... Durante algum tempo, Jess permaneceu absolutamente imóvel, fitando, perplexa, um esguio raio de Sol que percorria devagar o quadro pendurado na parede. Um quadro pintado por ela. O seu retrato da floresta que existia atrás da casa da irmã, com as folhas tocadas de fogo pelas primeiras geadas de Outono. Havia nele magentas e carmesins que não se recordava de ter visto antes, embora ela mesma o tivesse pintado. Pormenores de uma beleza extraordinária; matizes de sombra que, sem aquele foco de luz, nunca teria apreciado com atenção. Porquê? Por que razão não o contemplara devidamente, como agora? Por que nunca o vira em toda a sua glória? E onde estavam as crianças? Ao virar a cabeça para espreitar pela janela, sentiu uma vertigem de náuseas. Gemeu, o quadro e o sonho varrendo-se-lhe do pensamento. De fora, chegava-lhe o ruído do trânsito, à distância, afluindo aos semáforos do cruzamento da High Street, parando por momentos e tornando a fluir. Quando se atreveu a abrir os olhos de novo, o raio de Sol seguira caminho e o quadro regressara à sua sombra habitual. Soerguendo-se com dificuldade, olhou de relance para o relógio na cabeceira da cama. Mer…! Meio-dia. Não admirava que tudo no quarto lhe parecesse diferente. Com um suspiro, lançou as pernas para fora da cama, a cabeça a andar à roda. Teria bebido muito na noite anterior? Levantando-se com esforço, entreviu o seu reflexo no espelho e parou, horrorizada. O cabelo louro, pelos ombros, estava num desalinho; os olhos, normalmente de um azul-pálido-acinzentado, raiados de sangue e um pouco inchados. Quando o seu olhar se desviou para a parte de baixo do corpo, gelou, em estado de choque. A camisa nova, bonita, que usara na festa rasgara-se praticamente ao meio; o soutien fora puxado para baixo dos seios; a saia arrepanhada até à cintura. Olhando-se de cima a baixo, incrédula, passou um dedo pela nódoa negra azulada que lhe aparecera na coxa, pelo arranhão ensanguentado na barriga. Descobriu mais nódoas negras nos braços. Céus! O que me aconteceu? As palavras pairaram, mudas, no interior do quarto, enquanto Jess observava atentamente o seu reflexo, devolvendo-lhe o olhar. Com um ligeiro cambaleio, dirigiu-se à porta e, segurando-se ao caixilho, espreitou lá para fora. Sobre a mesa de centro, na sala de estar, viu dois copos manchados de vinho tinto. Uma garrafa vazia jazia, deitada, por debaixo da mesa. Quem quer que tivesse estado com ela no apartamento, na noite anterior, já não estava ali; nem na cozinha ou na casa de banho. A porta da frente encontrava-se fechada. Com mãos trémulas, examinou as fechaduras. Ninguém as arrombara. Quem quer que tivesse estado ali dentro com ela não forçara a entrada. Fora certamente convidado a entrar. Jess tinha ido à festa de fim de trimestre do colégio, disso recordava-se vagamente. Nada mais. O que bebera na festa? Onde fora depois da noite de discoteca? Com quem? Não conseguia lembrar-se de nada.
À hora a que chegara, a festa de fim de trimestre estava ao rubro. O átrio de desporto do Sixth Form College convertera-se num turbilhão de luzes giratórias. O barulho era ensurdecedor. Jess tinha parado diante das portas duplas, abertas ao ar húmido daquela noite de Verão, relutante em entrar. Queria colar as mãos aos ouvidos, queria virar costas e correr para longe, qualquer coisa que não fosse mergulhar na massa densa de corpos transpirados onde pairava o odor opressivo a perfume barato, água-de-colónia, beatas, erva, suor e álcool. Ainda não tinham conseguido revistar todos os miúdos. E de que serviria? Vendiam-se bebidas dentro do átrio e, por lei, metade deles já podia beber. Olá,Jess! Uma figura emergiu da escuridão fervilhante. Dan Nicolson, o chefe do departamento dela, saiu para a zona de estacionamento em macadame asfáltico, à porta do átrio, com um sorriso cansado. Estou a ficar velho para isto! A T-shirt demasiado garrida desmentia as suas palavras; aquela era a única noite do ano em que Dan permitia que o vissem no colégio com um traje menos formal. Ela riu-se. Eu sempre fui demasiado velha para isto, Dan. Desde o dia em que nasci. Estás cheio de estilo. Dan trazia o cabelo curto, cinzento-rato, espetado para cima, e os olhos castanhos escondidos atrás de um par de óculos escuros de marca. Ouvi dizer que tiraste a palha mais curta. Tens de ficar até ao fim? E separar os miúdos em plena cópula! Olhou para o céu, simulando exaspero. A menos que consiga convencer alguém a fazê-lo por mim. Queres que vá buscar-te uma bebida?, perguntou, puxando os óculos para cima da cabeça.
Jess aquiesceu. Não havia como oferecer resistência à tempestade de ruído que saía por aquela porta. Ela sabia muito bem qual seria a sensação no interior, mas tinha dito que vinha e prometera uma dança a uma pessoa. Ashley. Ash era o seu aluno mais promissor. O mais promissor em muitos anos. Destinado a ter nota máxima em todas as cadeiras que frequentava, o jovem jamaicano era alguém em quem ela investira muito tempo e energia, e já o via ao longe, com as suas mesas de mistura em cima do palco, a partir o recinto. Só teria de assegurar-se de que ele também a via, acenar, levantar o polegar em jeito de reconhecimento, encolher os ombros para lhe mostrar que não era preciso dançar, coisa que de qualquer modo lhe parecia quase impossível no meio daquela multidão compactada, e depois sairia discretamente». In Barbara Erskine, A Princesa Guerreira, 2008, tradução de Catarina Almeida, Grupo Planeta, Planeta Manuscrito, Lisboa, 2009/2010, ISBN 978-989-657-113-9.

Cortesia de PManuscrito/JDACT