quarta-feira, 30 de março de 2016

Cartas de Amor. Fernando Pessoa. «O meu amor já me não quer já me esquece e me desama tão pouco tempo a mulher leva a provar que não ama»

jdact e wikipedia

O Namoro
«(…) Vivia muito isolado, como se sabe. Muitas vezes não tinha quem o tratasse, e queixava-se-me. Estava realmente muito apaixonado por mim, posso dizê-lo, e tinha uma necessidade enorme da minha companhia, da minha presença. Dizia-me numa carta: ... Não imaginas as saudadas que de ti sinto nestas ocasiões de doença, de abatimento e de tristeza.... E mostra-o bem, nesta quadra que me fez:

Quando passo um dia inteiro
sem ver o meu amorzinho
cobre-me um frio de Janeiro
no Junho do meu carinho.

Em Maio de 1920, a Carris entrou em greve por uns dias, e passámos a fazer o percurso de comboio. Para que o meu Pai não soubesse que eu saía com o Fernando, ele apanhava o comboio no Cais do Sodré e eu em Santos. Assim conversávamos até Belém. Não digo namorávamos, porque o Fernando não gostava, conforme já contei. Quando acabou a greve, ia buscar-me, à tarde, como de costume e vínhamos de eléctrico para casa, mas, como ele achava que o trajecto não era suficientemente longo, dizia a brincar: E se fingíssemos que nos enganávamos e nos metêssemos num carro para o Poço do Bispo? Este escritório, onde eu estava empregada, fundiu-se, entretanto, com outro, na Rua Morais Soares, para onde fui e onde, portanto, o Fernando passou a ir buscar-me. Nesta altura, trabalhava ele, como correspondente, na Casa Toscanoy na Rua de S. Paulo. Aí passava as manhãs de domingo, de onde me telefonava. Como se sabe, o Fernando não gostava nada de falar ao telefone. Para nos podermos ver também ao domingo, eu, em vez de ir à missa à igreja de S. Domingos, como costumava, ia à da Conceição Velha, porque, depois, o Fernando (ele não assistia à missa, era crente mas não praticante) acompanhava-me a casa e assim tínhamos mais tempo para conversar no caminho. Muitas vezes me pediu para sairmos também à tarde. Numa carta, dizia: era excelente eu poder encontrar-te ao domingo de tarde, por exemplo.... Mas nunca o fizemos. Eu não podia, porque a família, principalmente o meu pai, que continuava sem saber de nada, era muito rigoroso comigo e não me era fácil arranjar um pretexto para sair...
O Fernando era uma pessoa muito especial. Toda a sua maneira de ser, de sentir, de se vestir até, era especial. Mas eu talvez não desse por isso, nessa altura, talvez porque estava apaixonada. A sua sensibilidade, a sua ternura a sua timidez, as suas excentricidades, no fundo, encantavam-me. Por exemplo, o Fernando era um pouco confuso, principalmente quando se apresentava como Álvaro de Campos. Dizia-me então: hoje, não fui eu que vim, foi o meu amigo Álvaro de Campos... Portava-se, nestas alturas, de uma maneira totalmente diferente. Destrambelhado, dizendo coisas sem nexo. Um dia, quando chegou ao pé de mim, disse-me: trago uma incumbência, minha Senhora, é a de deitar a fisionomia abjecta desse Fernando Pessoa, de cabeça para baixo num balde cheio de água. E eu respondia-lhe: detesto esse Álvaro de Campos. Só gosto do Fernando Pessoa. Não sei porquê, respondeu-me, olha que ele gosta muito de ti. Raramente falava no Caeiro, no Reis ou no Soares.
O Fernando, principalmente quando se encontrava abatido, não acreditava que eu pudesse gostar dele. Dizia-me numa carta: se não podes gostar de mim a valer, finge, mas finge tão bem que eu não perceba. Ou, então, como nesta quadra:

O meu amor já me não quer
já me esquece e me desama
tão pouco tempo a mulher
leva a provar que não ama.

Um dia ao passarmos na Calçada da Estrela, disse-me: o teu amor por mim é tão grande, como aquela árvore. Eu fingi que não percebi. Mas não está ali árvore nenhuma... Por isso mesmo, respondeu-me ele. Outra vez, disse-me: chega a ser uma caridade cristã tu gostares de mim. És tão nova e engraçadinha, e eu tão velho e tão feio». In Fernando Pessoa, Cartas de Amor, Organização de David Mourão Ferreira, preâmbulo de Maria da Graça Queiroz, Lisboa, Edições Ática, 1978.

Cortesia de EÁtica/JDACT