quarta-feira, 23 de março de 2016

Ernestina. Rentes de Carvalho. «Teimosa, desastrada, desobediente, repontona, com queda para transformar em calamidade as coisas simples! Um dia à janela deixou escapar das mãos uma jarra de vidro…»

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«Deus criou o mundo em Vila Nova de Gaia, numa tarde quente de Maio em 1930. E eu, quando uns quatro anos depois comecei a observar conscientemente a Sua criação, não o fiz como seria de esperar, apenas com os olhos que Ele me tinha dado à nascença, mas quase exclusivamente através dum binóculo. Esse irresistível e constante desejo de querer ver tudo de mais perto foi causa de grandes desesperos familiares, gritarias e alguns tabefes. Minha mãe era obrigada a puxar às mãos ambas para me desgrudar da janela, onde eu, horas imóvel a gozar a agitação do rio e do Porto, corria o risco de ficar raquítico. Mas se me obrigavam a movimentar-me o perigo era ainda maior, porque poucos passos dava sem ter o aparelho apertado contra os olhos, perdendo-se a conta das vezes que caí por erro de cálculo ou pelo fascínio de ver que, sem dor, conseguia amputar as pernas e fazer com que os pés me saíssem do peito. A prognose era que eu acabaria cego. À mesa não o largava. No penico descobria através dele um universo de formas imprevistas. Deformados pelo aumento, ou curiosamente diminutos, o garfo e a faca perdiam a trivialidade doméstica, excitavam a imaginação. Deitávamo-nos juntos e antes de adormecer eu percorria detalhadamente com ele os recantos do tecto em busca de aranhas, moscas, centopeias, fascinado por aquele mundo que existia indiferente à lei da gravidade ou, como eu dizia então, andava no ar de patas para cima.
Mendigos ou visitas, a padeira, o farrapeiro, os vizinhos que não estavam a par, quem batia à nossa porta sobressaltava-se ao descobrir que, pela força e naturalidade do uso, o binóculo parecia ter-se-me incrustado na cabeça como uma prótese. Esse maravilhoso instrumento fora-me dado pelo meu avô José Maria que, ao que parece, o ganhara às cartas a um patrão de traineira seu amigo. E com os tubos de cobre ele tinha de facto qualquer coisa de marítimo, mas ao mesmo tempo parecia um brinquedo, pois as minhas mãos abarcavam-no sem dificuldade e o seu poder de aumento não era excessivo. Foi também o avô que me ensinou a desenroscar as lentes para, concentrando com elas os raios do sol, fazer o milagre do lume sem fósforos. Queimei papéis, queimei as unhas e a pele, a sola dos sapatos, o pêlo do gato, roupa posta a secar, jornais, pontas de cigarro. Fiz um razoável número de buracos nos caixilhos das janelas. Um dia, a ver se descobria de que ponto vinha o fogo, pus-me a espreitar o sol através da lente, e só não ceguei do olho esquerdo porque o anjo da guarda me desviou a mão a tempo. Ficou a cicatriz na pálpebra, lembrança da primeira intervenção do sobrenatural, que a partir daí se deve ter ocupado de mim a tempo inteiro. pois outra explicação não vejo para ter escapado mais ou menos são aos perigos e trambolhões da minha infância.
O Cabeço são cinco ou seis casas de pedra solta na crista do Malhão, serra que nasce na margem esquerda do Sabor, e que pelo isolamento parece mais alta que os seus setecentos metros. Lugarejo desabrigado, exposto a todos os ventos, sem árvore que lhe dê sombra nas temerosas canículas, com a água longe, compreende-se mal que alguém jamais o tenha escolhido para moradia. A paisagem é majestosa. Num redor de dezenas de quilómetros avistam-se de lá aldeias e santuários, planaltos, encostas de terra avermelhada, serranias que, conforme a hora, passam do amarelo aos tons mais escuros do cinzento, ribeiros delgados que lembram cobras luzidias a esgueirar-se pelos vales. Vê-se até longe na Espanha. Vê-se a serra de Bornes. Vêem-se as montanhas que ficam para norte de Bragança». In José Rentes de Carvalho, Ernestina, 2001, Quetzal Editores, Lisboa, 2009, 2014, ISBN 978-989-722-171-2.

Cortesia de QuetzalE/JDACT