segunda-feira, 28 de março de 2016

Estudos sobre Veneno. Maria V. Snyder. «Isso deverá encorajá-la. Vamos, meu pai, deixe-me fazê-lo. O meu corpo sobressaltou-se de medo intenso ao reconhecer a voz…»

Cortesia de wikipedia

As lendas de Yelena Zaltana
«Presa numa escuridão que me cercava como um caixão, não havia nada para me distrair das minhas lembranças. Recordações vividas que aguardavam para me emboscar sempre que a minha mente não estava focada. Mergulhada na escuridão, lembrava-me das chamas ardentes que me acoitaram o rosto. Embora as minhas mãos houvessem sido amarradas a uma estaca que se enterrava profundamente nas minhas costas, eu já me havia recuperado do ataque. O fogo fora afastado pouco antes de empolar a minha pele, contudo as minhas sobrancelhas e cílios há muito já haviam sido chamuscados pelas labaredas. Apague as chamas!, ordenara a voz áspera de um homem. Eu soprei o fogo com lábios rachados, ressecados pelas labaredas e pelo medo. A humidade na minha boca desaparecera e os meus dentes irradiavam calor como se tivessem sido assados num forno. Idiota, praguejou. Não com a boca. Use a mente. Apague as chamas com a sua mente. Fechando os olhos, esforcei-me para concentrar os meus pensamentos para fazer o inferno desaparecer. Estava disposta a fazer qualquer coisa, por mais irracional que pudesse ser, para persuadir o homem a parar. Esforce-se mais. Mais uma vez, o calor passou perto do meu rosto, a luz forte cegando-me, estando eu com as pálpebras cerradas. Coloque fogo no cabelo dela. Uma voz diferente instruiu. Parecia mais jovem e mais ansioso do que o outro homem. Isso deverá encorajá-la. Vamos, meu pai, deixe-me fazê-lo. O meu corpo sobressaltou-se de medo intenso ao reconhecer a voz. Contorci-me para afrouxar as amarras que me prendiam, enquanto os meus pensamentos se transformavam num zumbido monótono. Um sussurro escapara da minha garganta, tornando-se mais alto, até percorrer todo o aposento e extinguir as chamas. O estalo metálico da tranca despertou-me de sobressalto da lembrança apavorante. Um facho pálido de luz amarelada cortou a escuridão, correndo ao longo da parede de pedra quando a porta da cela se abriu. Deixei de ver pela claridade quando o brilho do lampião me atingiu. Eu cerrei-os com força enquanto me encolhia no canto. Mova-se, ratazana, ou vamos usar o chicote! Dois guardas do calabouço prenderam uma corrente ao anel de metal que me rodeava o pescoço e puxaram-me até ficar de pé. Cambaleei para a frente ante a dor lancinante em redor do pescoço. De pé, com as pernas trémulas, senti os guardas eficientemente a acorrentarem as minhas mãos para trás e algemaram os meus pés. Evitei olhar para a luz bruxuleante enquanto me conduziam pelo corredor principal do calabouço. Senti uma baforada de ar viciado e rançoso no rosto. Os meus pés descalços arrastavam-se por poças de dejectos que não podiam ser identificados. Ignorando os chamamentos e os gemidos dos outros prisioneiros, os guardas desaceleraram o passo, contudo o meu coração sobressaltava-se a cada palavra. Há, há, há... Tem alguém que vai balançar na ponta da corda. Um baque, um estalo e a última refeição vai deslizar pelas suas pernas! Uma ratazana a menos para alimentar. Levem-me! Levem-me! Eu também quero morrer! Nós paramos. Através das pálpebras semicerradas vi uma escadaria. Na tentativa de colocar o pé no primeiro degrau, tropecei nas correntes e caí. Os guardas levantaram-me à força. A rugozidade dos degraus de pedra cortaram-me a pele exposta dos braços e das pernas. Após ser arrastada através de duas grossas portas de metal, fui atirada para o chão. A luz do sol feria os meus olhos. Eu fechei-os com força e lágrimas rolaram pelas minhas faces. Era a primeira vez, em muitas estações, que eu estava vendo a luz do dia. É agora, pensei, começando a entrar em pânico. Contudo, saber que a execução daria fim à minha miserável existência no calabouço acalmou-me. Novamente sendo colocada de pé à força, segui cegamente os guardas. O meu corpo contorcia-se devido às picadas de insectos e de dormir no feno sujo. Eu fedia como uma ratazana. Recebendo apenas uma pequena porção de água, jamais a desperdicei com banhos. Assim que os olhos se acostumaram à luz, olhei em redor. As paredes estavam nuas, sem os fabulosos candeeiros de ouro e as bem trabalhadas tapeçarias, que outrora decoravam os corredores principais do castelo. O centro do piso de pedra fria estava desgastado de tanto uso. Provavelmente estávamos viajando ao longo de corredores escondidos, usados apenas pelos criados e guardas. Quando passámos por duas janelas abertas, olhei para fora com uma voracidade que nenhum alimento seria capaz de saciar. O verde vibrante da relva fez os olhos doerem. As árvores tinham folhagem. Flores cobriam os trilhos e enchiam canteiros. A brisa fresca cheirava como um perfume caro, que eu inspirei profundamente». In Maria V. Snyder, Estudos sobre Veneno, 2005, As lendas de Yelena Zaltana, tradução de Maurício Araripe, ePub, Editora HR, Harlequin Enterprises, Rio de Janeiro, 2011, ISBN 978-853-980-460-3.

Cortesia de EditoraHR/HarlequinE/JDACT