sexta-feira, 25 de março de 2016

Um estranho em Goa. José Eduardo Agualusa. «Hesitei em fazer isso antes porque já existe o Plácido Domingo, o tenor, mas nunca me conformei. Certos nomes deviam ser obedecidos, isto é, deviam implicar um destino»

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«Onde será que isso começa a correnteza sem paragem o viajar de uma viagem a outra viagem que não cessa? In Caetano Veloso

Plácido Domingo contempla o Mandovi
«As gralhas, lá fora, ralham umas com as outras. Arranham a noite numa algazarra áspera. Viro-me no colchão tentando encontrar um pedaço fresco de lençol. Sinto que estou a ser cozinhado ao vapor como se fosse um legume. Salto da cama e sento-me no parapeito da janela. Se fumasse, nunca fumei, seria agora a altura certa para acender um cigarro. Assim, fico a olhar a enorme figueira (Ficus benghalensis), no quintal, tentando seguir entre as sombras o combate das gralhas. Não sopra o alívio de uma brisa. A noite, porém, girando por sobre Pangim imensa e límpida, com a sua torrente de estrelas, refresca-me a alma. Penso nesta frase e não gosto dela. Está uma noite de cristal, funda, transparente, e isso produz, realmente, uma certa sensação de frescura. Acho que não gosto nesta frase é da palavra alma. Alma parece-me uma palavra muito grande. Já toda a gente abusou dela, poetas medíocres, filósofos, guerreiros, conspiradores, mas ainda assim continua enorme. Risco a alma e mantenho as estrelas. Nas grandes cidades não é possível ver as estrelas. Volto ao quarto e ligo o computador. A frase, O que faço eu aqui?, título de uma recolha de textos de Bruce Chatwin, desliza lentamente no écran. Uso-a desde há muito como cortina de protecção. Nesta cidade remota, à uma hora da madrugada, parece-me uma boa pergunta. Uma vez uma jovem jornalista quis saber porque é que eu escrevia. Os jornalistas menos experientes costumam perguntar isto a quem escreve, para ganhar tempo, enquanto pensam no que vão perguntar em seguida. Há quem assuma, com ar trágico, que a literatura é um destino: escrevo para não morrer. Outros fingem desvalorizar o próprio ofício: escrevo porque não sei dançar. Finalmente existem aqueles, raros, que preferem dizer a verdade: escrevo para que gostem de mim (o português José Riço Direitinho), ou, escrevo porque não tenho olhos verdes (o brasileiro Lúcio Cardoso). Podia ter respondido alguma coisa deste género mas decidi pensar um pouco, como se a pergunta fosse séria, e para minha própria surpresa encontrei um bom motivo: escrevo porque quero saber o fim. Começo uma história e depois continuo a escrever porque tenho de saber como termina. Foi também por isso que fiz esta viagem. Vim à procura de uma personagem. Quero saber como termina a história dela.

Há algum tempo que pretendo contar a história de Plácido Domingo. Hesitei em fazer isso antes porque já existe o Plácido Domingo, o tenor, mas nunca me conformei. Certos nomes deviam ser obedecidos, isto é, deviam implicar um destino. Escrevi, há três ou quatro anos, um conto que começava assim. Muita gente me perguntou se a história era verdadeira. Costumo insinuar, quando a propósito de outras histórias me colocam idêntica pergunta, que já não sei onde ficou a verdade, embora me recorde perfeitamente de ter inventado tudo do princípio ao fim. Naquele caso fiz o contrário. Tretas, menti, pura ficção. Disse isto porque queria encontrá-lo. Inventei um nome para ele, ou nem isso, dei-lhe o nome de outro homem. No meu conto, Plácido Domingo, um velho de pele dourada, seco, gestos demorados, a fala antiga e cerimoniosa de um cavalheiro do século XIX, vive em Corumbá, pequena cidade nas margens do Rio Paraguai, junto à fronteira com a Bolívia. Nessa altura, é claro, eu já sabia que Plácido Domingo se havia escondido em Goa. Imagino-o a descer todas as tardes a mesma rua deserta. Vejo-o sentar-se no café, junto ao cais, de frente para as largas águas do rio. O dono do café, um índio melancólico, cumprimenta-o sem se mover: boas tardes señor Plácido! O velho responde inclinando levemente a cabeça. Com as lentas mãos desdobra o lenço e limpa o suor da testa. O tempo enrosca-se aos seus pés como um cachorro vadio. Plácido Domingo, o meu personagem, esconde, debaixo do grande sol de Corumbá, sob a mansidão de um quotidiano sempre igual, um antigo segredo. Na cidade ninguém sabe de onde ele veio. Chegou há vinte anos num vapor cansado, alugou um quarto no Hotel Paraíso, e por ali ficou. Uma vez por semana Plácido Domingo cruza a fronteira e vai até Puerto Suarez. Encontraram-no uma vez remexendo velhos trastes, cobertos de poeira, num sombrio barraco de bugres, e foi quanto bastou para que dissessem que se dedicava a comprar e a vender as famosas cabeças reduzidas dos jívaros. Insinuaram-se até coisas piores. Sentado na sua cadeira Plácido Domingo espera que o índio lhe traga, como todas as tardes, o caldo de piranha. Leva devagar a colher à boca e deixa que o calor lhe dilate o peito. Revigorado, abraça-se à bengala e fica ali, a olhar o rio, à espera que a noite se deite por inteiro, como uma manta de estrelas, sobre os sobrados tristes, a imensa planície inundada, a áspera gritaria dos pássaros. Foi naquele café, precisamente àquela hora, que eu o encontrei». In José Eduardo Agualusa, Um Estranho em Goa, 2000, Livros Cotovia, Lisboa, colecção Série Oriental, Viagens, 2000, Fundação Oriente, ISBN 978-972-842-385-8.

Cortesia FOriente/LCotovia/JDACT