quarta-feira, 9 de março de 2016

Palavras Cínicas. Albino Forjaz Sampaio. «Quanto império, quanta vontade não é precisa para no meio de uma carícia não cuspirem à cara de um canalha. Filhinho, filhinho..., e aquele pedaço de belo lixo rebusca frases»

Cortesia de wikipedia e jdact

Um jornalista levado dos diabos
«Vi que a vida era má e escrevi estas cartas. Se as leres no meio de um festim, as porás de parte com enfado, mas buscarás a sua consolação quando o mundo te fizer chorar».

Carta I
«(…) A geração é de covardes e cada ano que passa está mais corrupto o mundo. Ah, não ter eu muito que dar a este pequeno miserável que me bate agora à porta, para que ele me chame o mais vil que o sol cobre, o mais canalha de todos, o mais indigno, o mais bandido! Ele não se engana. Lá tem o seu raciocínio que não falha nunca. Dei-lhe tudo o que tinha e todavia vai a resmungar baixinho que um dia, um dia que virá cedo, me virá bater à porta com uma coronha e me há de fuzilar a mim, o maior dos patifes que o socorri. Vai-se embora a pensar que se fosse rico, havia de azorragar toda essa ralé que pede esmola e toda aquela que dá tudo o que tem. E cisma em ser um dia o maior dos Neros que o mundo tem visto; em ter um chicote com que possa de uma só vez azorragar a Terra, ele, cujo corpo deveria ser balançado no candeeiro ali defronte. De trinta mendigos a quem dei esmola hão de nascer noventa patifes para me apedrejar. Abençoada esmola! Mas explica-se. É que a minha esmola, esmola humana, fecunda lá dentro todo o meu cinismo e toda a minha canalhice. Deste-me esmola? Muito bem, odeio-te. Odeio-te porque não posso também dar esmola e porque me curvei a ti. Toda a vida tu me fizeste bem, socorreste-me, agasalhaste-me. Um dia eu mau como sou estou por cima. Então eu havia de perder a ocasião de me vingar de tudo o que tu me fizeste? Chegou o meu dia. Agora, meu velho, eu sou maior, ouves? Eu dobrei-me e tu socorreste-me, mas eu dobrei-me. Eu era um faminto e tu sentaste-me à tua mesa, mas eu dobrei-me. Tive fome tu encheste-me, tive frio tu agasalhaste-me. Irritante Tu, sempre Tu. E eu não podia vingar-me, mas agora chegou a minha vez. Acredita que todos aqueles a quem fazemos bem nutrem lá dentro a secreta esperança de um dia nos correrem a pontapé. Logo no primeiro dia em que não temam desconjuntar a bota quando o fizerem, percebes? Escutaste? Vem, se te sentes com forças. Demais és pobre. Então para ti a vida é tudo isto e tudo o mais que tu tiveres coragem de inventar. O pobre será odioso até ao seu parente mais chegado, que não merece carinhos quem não tem para caldo, ouves? Tu virás e triunfarás. Tu serás mau e cínico e traidor. A Vida? Seria loucura, na verdade, conservarmos alguns sentimentos compassivos quando vivemos em semelhantes cavernas. A Vida é uma canalhice, uma farsa, uma luta brutal, como diz Tourgueneff.

Carta II
Foi em Dostoiewsky que eu encontrei um dia esta frase: no fundo de cada um dos nossos contemporâneos residem latentes os instintos de um carrasco! Não tens tu encontrado, ó caricato, nas tuas horas de angústia, somente semblantes frios, corações empedernidos e ouvidos cerrados? Quantas vezes perguntaste onde estavam a Bondade humana, a Justiça humana? Quem te respondeu? Inútil pergunta. Ninguém. Deus? Onde estava Deus? Deus não é deste mundo! E cada dia que passa me convenço mais que nele só canalhas existem. Quem sou eu? Um canalha. Quem és tu? Um canalha. Todos nós disfarçamos os piores instintos. Inútil mascarada, se todos nos conhecemos bem. Tenho ouvido mais juras sem fé do que de minutos tem um século. Tenho visto mais traições, mais egoísmos e mais crimes que de mortos tem a eternidade ou de beijos tem levado o corpo de uma prostituta que envelheceu no ofício. Filhas do homem, mães do homem, foi para ele que todas essas mulheres se prostituíram; que elas dançam cancans infames e sofrem abandalhamentos sem nome. O seu corpo, onde todos bolsam o seu quinhão de infâmia, é como os mármores divinos dos museus, toda a gente lá vai pousar o olhar. Tem alguma coisa de uma sentina ou de um confessionário. Elas é que sabem por quanto se compra um riso. Quanto império, quanta vontade não é precisa para no meio de uma carícia não cuspirem à cara de um canalha. Filhinho, filhinho..., e aquele pedaço de belo lixo rebusca frases, prepara gozos requentados, pedidos sem cerimónia como se eu lhes arremessasse à cara uma baforada de fumo de cigarro ou lhes salpicasse o rosto com o meu hálito cheio de lama. Elas ali são minhas, muito minhas. Paguei-as à hora como a corrida dos cocheiros». In Albino Forjaz Sampaio, Palavras Cínicas, 1905, prefácio de Fred Teixeira, Wikipédia, 2011, Editora Guerra e Paz, ISBN 978-989-702-000-1.

Cortesia de EGPaz/Wikipedia/JDACT