segunda-feira, 14 de março de 2016

As Saias de Elvira. Ensaios. Eduardo Lourenço. «… o estatuto real ou simbólico de que os artistas e os intelectuais gozavam e de que os representantes da Geração 70 são, entre nós, a mítica e quixotesca expressão»

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«(…) A ciência experimental não foi apenas um tipo de conhecimento que mudou radicalmente o modo de vida do século XIX e condicionou toda a sua visão do mundo, e de maneira complexa, mas, irresistível, a estrutura do seu imaginário. Foi a sua religião. A figura do sábio, que coincide ou não com a do inventor, distinta da do filósofo se este não é também homem de ciência, ocupava naquelas culturas onde a criação científica tem uma expressão social proeminente, na Alemanha, na Inglaterra, na França, o lugar que a Alta Idade Média reservara ao teólogo. Nãp é sem importância constatar que esta figura não comparecerá na ficção de Eça senão sob a forma da veleidade, do sonho diletante de Carlos da Maia. O discurso da verdade, aquele digno de ser tido como tal, como o declarou um representante típico dessa nova espécie de homem, Marcelin Berthelot, é o da Ciência: não há mistério para o olhar que a Ciência pousa sobre o mundo. Tudo o resto é sobrevivência de saberes teológicos ou metafísicos que estão para o verdadeiro conhecimento como a alquimia está para a química. No fim do século chamar-se-á cientismo a esta idolatria da Ciência, mas isso em nada alterou o seu impacto revolucionário sem precedentes na transformação da sociedade ocidental até então rural ou mercantil em sociedade organicamente industrial. Sobretudo a partir de 1876, no momento em que a geração de Eça toma consciência de si mesma e do mundo que a cerca, como sociedade de massas. É o triunfo da turba e como tal será apercebido, sem entusiasmo, aliás. Tudo quanto caracteriza hoje, noutro ritmo e com outra potência, a nossa actual civilização, já é visível e está presente no tempo em que o autor de Os Maias viveu, constituindo o pano de fundo da sua experiência vital e cultural. Isto é sobretudo exacto para quem não viveu esse tempo como específico tempo português, o que foi o caso de Eça de Queirós, pois o nosso não era ainda o de uma sociedade de massas, nem de revolução científica, e só o foi lá fora, com propriedade, no fim do século, nas grandes metrópoles. No fim da sua vida, como espectador interessado e implicado nela, o autor de As Cidades e as Serras foi já contemporâneo dessa sociedade massificada que não era mero fenómeno quantitativo mas qualitativo pois alterou o estatuto dos indivíduos na sociedade e, em particular, o estatuto real ou simbólico de que os artistas e os intelectuais gozavam e de que os representantes da Geração 70 são, entre nós, a mítica e quixotesca expressão. Mas só Eça foi realmente, na vida e na imaginação, o habitante desse novo mundo. Contrariamente à impressão que nos transmitem não só as obras como as vidas de Antero e de Oliveira Martins, apesar deste último nos parecer também contemporâneo de si mesmo sob muitos aspectos, só na obra de Eça, graças ao seu extraordinário mimetismo cosmopolita, nós temos a sensação de viver com ele e através dele o tempo próprio da segunda metade do século. Século que não foi apenas o da mudança de ritmo na civilização material e de costumes exteriores mas, sobretudo, um tempo que era ele mesmo nova visão do mundo, instalando-nos num presente que se sabia e se dizia civilizado e moderno. Ou melhor, que se inventava como Modernidade. É nesse tempo novo que a obra de Eça de Queirós nos instala, de maneira sensível, com uma nitidez e uma familiaridade, por assim dizer, não só mágicas, mas propriamente míticas. A temporalidade única desse momento histórico, vital, cultural, está impressa, infiltrada no tecido da sua ficção e alimenta como sangue escrito cada linha do seu texto. Em termos cronológicos, nem Camilo, nem mesmo Júlio Dinis viveram num tempo, e, sobretudo, num tempo português, muito diverso do de Eça de Queirós. O mundo de Uma Família Inglesa, na sua tranquila visão provincial é um mundo bem aderente ao seu tempo oitocentista, sem tentações morbidamente melancólicas como o do Romantismo, nem pulsões, ao mesmo tempo utópicas e autodestrutivas, como o de Eça». In Eduardo Lourenço, As Saias de Elvira e Outros Ensaios, Gradiva, Lisboa, 2006, ISBN 989-616-151-8.

Cortesia de Gradiva/JDACT