segunda-feira, 14 de março de 2016

Herege. Ayaan Hirsi Ali. «Defendem um islão idêntico ou quase igual à sua versão original do século VII. E mais: consideram um imperativo da sua fé que ela seja imposta a todos os demais»

jdact e wikipedia

«Antes de começarmos a falar sobre o islão, devemos entender o que ele é e reconhecer certas distinções no mundo muçulmano. As distinções a que me refiro não são aquelas convencionais entre sunitas, xiitas e outros ramos da fé islâmica. Falo de agrupamentos sociais abrangentes definidos pela natureza da observância de cada um. Subdividirei os muçulmanos. Não subdividirei o islão. O islamismo é um credo fundamental baseado no Alcorão, as palavras reveladas pelo anjo Gabriel ao profeta Maomé, e no hadith, as palavras complementares que descrevem a vida e os ditos do Profeta. Apesar de algumas diferenças sectárias, esse credo une todos os muçulmanos. Todos, sem excepção, conhecem de cor estas palavras: testemunho que não há deus senão Alá; e Maomé é Seu mensageiro. Essa é a Shahada, a profissão de fé dos muçulmanos. Para ocidentais habituados à liberdade individual de consciência e religião, a Shahada pode parecer uma declaração de crença que não difere de qualquer outra. Mas, na realidade, a Shahada é um símbolo religioso e político. Nos primórdios do islão, quando Maomé ia de porta em porta tentando persuadir os politeístas a abandonarem o culto a ídolos, ele os convidava a aceitar que não existia divindade além de Alá e que ele era o mensageiro de Alá, mais ou menos como Cristo pedira aos judeus para aceitarem que ele era o filho de Deus. No entanto, após dez anos dessas tentativas de persuasão, Maomé e seu pequeno grupo de crentes foram para Medina, e a partir desse momento a missão de Maomé assumiu uma dimensão política. Os não crentes ainda eram convidados a se submeter a Alá, mas, depois de Medina, os que se recusassem eram atacados. Se derrotados, davam-lhes a opção de se converter ou morrer. (Jesus e os cristãos podiam conservar a sua fé caso se submetessem ao pagamento de um tributo especial.) A Shahada é o símbolo mais representativo da alma islâmica. Mas actualmente existe uma disputa no islã pela posse desse símbolo. Quem é o dono da Shahada? Serão aqueles muçulmanos que desejam dar destaque aos anos de Maomé em Meca, ou os que se inspiram nas conquistas do seu profeta depois de Medina? Há milhões e milhões de muçulmanos que se identificam com a primeira dessas alternativas. No entanto, cada vez mais eles são refutados pelos seus correligionários que desejam reviver e reconstituir a versão política do islão nascida em Medina, a versão que transformou Maomé de um andarilho do deserto num símbolo de moralidade absoluta. Baseada nisso, creio que podemos distinguir três grupos de muçulmanos.
O primeiro grupo é o mais problemático. São os fundamentalistas que, quando falam em Shahada, querem dizer: temos de viver o nosso credo ao pé da letra. Eles almejam um regime baseado na sharia, a lei religiosa islâmica. Defendem um islão idêntico ou quase igual à sua versão original do século VII. E mais: consideram um imperativo da sua fé que ela seja imposta a todos os demais. Fiquei tentada a chamar esse grupo de muçulmanos milenaristas, pois o seu fanatismo lembra as várias seitas fundamentalistas que floresceram no cristianismo medieval antes da Reforma, a maioria das quais combinava fanatismo e violência com o presságio do fim do mundo. Mas essa analogia é imperfeita. Enquanto a doutrina xiita aguarda o retorno do décimo segundo imame e o triunfo global do islão, os fanáticos sunitas tendem a aspirar à criação forçada de um novo califado aqui na Terra. Por isso, eu os chamarei de muçulmanos de Medina, já que eles consideram um dever religioso impor a sharia pela força. O seu objectivo não é apenas obedecer aos ensinamentos de Maomé, mas também imitar a conduta belicosa do Profeta depois que ele se mudou para Medina. Mesmo que eles não pratiquem pessoalmente a violência, não hesitam em consentir nela. São os muçulmanos de Medina que chamam os judeus e os cristãos de porcos e macacos e pregam que essas duas fés são falsas religiões, nas palavras de Ed Husain, membro da organização Council of Foreign Relations (um ex-islamita). São os muçulmanos de Medina que preconizam a decapitação pelo crime de descrença no islão, a morte por apedrejamento em casos de adultério e o enforcamento por homossexualidade. São os muçulmanos de Medina que põem as mulheres em burcas e as espancam se elas saírem de casa sozinhas ou se não se cobrirem direito. Foram muçulmanos de Medina que, em Julho de 2014, fizeram uma arruaça violenta em Gujranwala, no Paquistão, incendiaram oito casas e mataram uma mulher e as suas duas netas, tudo isso porque um jovem de dezoito anos colocou no Facebook uma foto alegadamente blasfema». In Ayaan Hirsi Ali, Herege, tradução de Laura Motta e Jussara Simões, Editora Schwarcz, Companhia das Letras, 2015, ISBN 978-854-380-373-9.

Cortesia de ESchwarcz/CLetras/JDACT