sexta-feira, 11 de março de 2016

A Última Quimera. Ana Miranda. «Pôs a bandeja sobre uma mesinha entre mim e Augusto, esboçou um sorriso, cruzou os braços aquecendo-se com o xale e ficou ali, imóvel, distante daquela sala escura que ela devia detestar»

Cortesia de wikipedia e jdact

A plenitude da existência
«(…) Depois fantasiei-a diante de um toucador, arranjando os cabelos com uma coifa, desejando parecer mais bonita, como se fosse possível. Mas logo entrou a tia Alice; cumprimentou-me com o mesmo ar crítico de sempre, retirou a partitura da estante, apagou as velas e fechou a tampa do piano, desaparecendo em seguida. Era ela, e não Esther, quem tinha estado a tocar aquele instrumento. Augusto deu-me diversas notícias familiares. Ele estava a par de tudo o que se passava na Paraíba, agitação política, movimento armado no sertão, terras invadidas, armazéns saqueados pelas hordas famintas, cangaceirismo por todos os lados, as brigas de Joque, que ainda era presidente da província, pois de poucos em poucos dias recebia cartas de dona Mocinha. Quando demorava a chegar uma carta de sua mãe, Augusto tornava-se inquieto, fumava cigarrilhas de cânfora ou de eucalipto para evitar um ataque de asma, tomava banho de água muito fria, falava a cada instante na falta de notícias, temeroso de significar alguma doença, ou mesmo a morte, da sua adorada mãe. Artur, Nini e Pupu estiveram no Rio de Janeiro, gozando todos os desportos da cidade. Marica Cirne está passando bem. Donata fez sessenta anos e continua maternal, virgem, dona de todas as verdades fundamentais da natureza. Generino escreveu um soneto para Esther. Veio aqui esta semana, mesmo, está sempre connosco, assaz interessado nos meus negócios particulares. Há por dentro daquela casca de esquisitices puramente tegumentar uma enorme bondade desconhecida que o agiganta de modo extraordinário, à luz de rigoroso critério julgador. Alexandre está perto de se formar, Odilon assistirá às festas. Não vai perguntar pelo tio Acácio? E... Marion Cirne? Decerto não quer falar neste assunto, mas tenho que dizer, até hoje ela não se casou. E nem se vai casar. És mesmo um estouvado. Aprígio está constipado. A boa Iaiá, sempre revigorando as energias plásmicas da saúde. Irene Fialho e Olga possuem ainda aquele magnetismo. Dona Miquilina continua sendo a companheira inseparável das filhas. Rómulo está no interior de Minas. Faleceu o doutor Pacheco, o pai de Rómulo, lembra-se dele? Sim, me lembrava de todas aquelas personagens, embora os nomes recriassem pessoas distantes, imateriais, como se estivessem todas mortas, às quais eu podia ver apenas através de uma espessa neblina. Para Augusto, ao contrário, era como se estivessem ao seu lado, em carne e osso, respirando e falando. Ele vivia voltado para seu passado. Conversamos sobre o tempo em que éramos crianças e passávamos férias juntos, no Pau d'Arco. Ele lembrou-se do concriz de seu pai, que vivia numa das gaiolas da cozinha e do qual sabíamos imitar com perfeição o canto, que por sua vez era uma imitação do canto de um sabiá que ficava perto. Lembrou-se do perfume das rosas que cresciam pelas paredes de tijolos da casa-grande, dos vidros violeta das janelas, das telhas tão velhas que pareciam plantações de fungos. Falou, como sempre, da história da moeda de ouro roubada por sua ama-de-leite, que ainda o oprimia e o fazia ter pesadelos. Dos banhos. Do comboio. Dos morcegos. Do tamarindo. Do Mi-santropo. Em seguida mostrou-me uma folha de canela onde estava a escrever com a ponta de um alfinete a palavra Saudade, que iria mandar para sua mãe; pus a folha diante de meus olhos, contra a luz, elogiei o trabalho minucioso de Augusto, mas eu estava suspenso, esperava algo acontecer, era como se eu ainda não tivesse chegado naquele sobrado. Durante o nosso encontro às vezes Augusto se entregava a olhar a paisagem pela janela e, quando ouvia o apito de um navio prestes a deixar o cais, ficava em silêncio, absorto, dando a impressão de estar partindo junto com o vapor. Talvez se estivesse a lembrar do melancólico apito do bueiro no Engenho do Pau dArco. Tudo o transportava ao seu passado junto dos pais e irmãos. Sei que a minha visita lhe era preciosa por este motivo; eu lhe levava recordações das águas negras do Una, dos ares cosmopolitas de Cabedelo. Foi num desses momentos de abstracção e silêncio que a porta da parte íntima da casa se abriu e, com o coração disparado, eu a vi surgir. Envolta num xale de barbante, pálida, magra, Esther entrou na sala para me cumprimentar e servir uma xícara de café. Havia algo diferente nela, uma sombra parecida com a que cercava Augusto; ela não era mais a moça colorida, leve, alegre de antes, a moça que sorria e cultivava flores nas janelas e nos jardins. Pôs a bandeja sobre uma mesinha entre mim e Augusto, esboçou um sorriso, cruzou os braços aquecendo-se com o xale e ficou ali, imóvel, distante daquela sala escura que ela devia detestar. Naquele momento vi sob os seus olhos as olheiras fundas; as suas mãos estavam enrijecidas. Augusto tratou de servir, ele mesmo, o café nas xícaras, mas percebeu que faltava o açúcar e pediu que Esther o fosse buscar na cozinha. Quando ela voltou, com o açucareiro, ele a tocou ternamente na mão, o que a fez ruborizar e lançar um breve olhar sobre mim. Vá deitar-se, não se canse, disse ele. Esther retirou-se em seguida, quase como um autómato. Pobre de minha esposa, disse Augusto. Errou ao casar-se comigo. Perguntei-lhe porque dizia isso». In Ana Miranda, A Última Quimera, Companhia das Letras, 1995, ISBN 857-164-454-3.

Cortesia de CdasLetras/JDACT