sábado, 12 de março de 2016

História da Loucura na Idade Clássica. Michel Foucault. «Os loucos tinham então uma existência facilmente errante. As cidades escorraçavam-nos de seus muros; deixava-se que corressem pelos campos distantes, quando não eram confiados a grupos de mercadores e peregrinos»

Cortesia de wikipedia

Stultifera navis
«(…) Facto curioso a constatar: é sob a influência do modo de internamento, tal como ele se constituiu no século XVII, que a doença venérea se isolou, numa certa medida, do seu contexto médico e se integrou, ao lado da loucura, num espaço moral de exclusão. De facto, a verdadeira herança da lepra não é aí que deve ser procurada, mas sim num fenómeno bastante complexo, do qual a medicina demorará para se apropriar. Esse fenómeno é a loucura. Mas será necessário um longo momento de latência, quase dois séculos, para que esse novo espantalho, que sucede à lepra nos medos seculares, suscite como ela reacções de divisão, de exclusão, de purificação, que, no entanto, lhe são aparentadas de uma maneira bem evidente. Antes de a loucura ser dominada, por volta da metade do século XVII, antes que se ressuscitem, em seu favor, velhos ritos, ela tinha estado ligada, obstinadamente, a todas as experiências maiores da Renascença. É esta presença, e algumas das suas figuras essenciais, que é preciso agora recordar de um modo bem rápido. Comecemos pela mais simples dessas figuras, e também a mais simbólica. Um objecto novo acaba de fazer o seu aparecimento na paisagem imaginária da Renascença; e nela, logo ocupará lugar privilegiado: é a Nau dos Loucos, estranho barco que desliza ao longo dos calmos rios da Renânia e dos canais flamengos. A Narrenschiff é, evidentemente, uma composição literária, emprestada sem dúvida do velho ciclo dos argonautas, recentemente ressuscitado entre os grandes temas míticos e ao lado de Blauwe Schute Jacob Van Oestvoren em 1413, de Borgonha. A moda é a composição dessas Naus cuja equipagem e heróis imaginários, modelos éticos ou tipos sociais, embarcam para uma grande viagem simbólica que lhes traz, senão a fortuna, pelo menos a figura de seus destinos ou as suas verdades. É assim que Symphorien Champier compõe sucessivamente uma Nau dos Príncipes e das Batalhas da Nobreza em 1502, depois uma Nau das Damas Virtuosas em 1503. Existe também uma Nau da Saúde, ao lado de Blauwe Schute Jacop van Oestvoren em 1413, da Narrenschiff Brant (1497) e da obra de Josse Bade: Stultiferae erae naviculae scaphae fatuarum mulierum (1498). O quadro de Bosch, evidentemente, pertence a essa onda onírica.
Mas de todas essas naves romanescas ou satíricas, a Narrenschiff é a única que teve existência real, pois eles existiram, esses barcos que levavam a sua carga insana de uma cidade para outra. Os loucos tinham então uma existência facilmente errante. As cidades escorraçavam-nos de seus muros; deixava-se que corressem pelos campos distantes, quando não eram confiados a grupos de mercadores e peregrinos. Esse costume era frequente particularmente na Alemanha: em Nuremberga, durante a primeira metade do século XV, registou-se a presença de 62 loucos, 31 dos quais foram escorraçados. Nos cinquenta anos que se seguiram, tem-se vestígios ainda de 21 partidas obrigatórias, tratando-se aqui apenas de loucos detidos pelas autoridades municipais. Eram frequentemente confiados a barqueiros: em Frankfurt, em 1399, encarregam-se marinheiros de livrar a cidade de um louco que por ela passeava nu; nos primeiros anos do século XV, um criminoso louco é enviado do mesmo modo a Mayence. Às vezes, os marinheiros deixavam em terra, mais cedo do que haviam prometido, esses passageiros incómodos; prova disso é o ferreiro de Frankfurt que partiu duas vezes e duas vezes voltou, antes de ser reconduzido definitivamente para Kreuznach. Frequentemente as cidades da Europa viam essas naus de loucos atracar em seus portos. Não é fácil levantar o sentido exacto deste costume. Seria possível pensar que se trata de uma medida geral de expurgo que as municipalidades fazem incidir sobre os loucos em estado de vagabundagem; hipótese que por si só não dá conta dos factos, pois certos loucos, antes mesmo que se construam casas especiais para eles, são recebidos nos hospitais e tratados como loucos. No Hótel-Dieu de Paris, os seus leitos são colocados em dormitórios; por outro lado, na maior parte das cidades da Europa existiu, ao longo de toda a Idade Média e da Renascença, um lugar de detenção reservado aos insanos: é o caso do Chatelet de Melun ou da famosa Torre dos Loucos de Caen; são as inúmeras Narrturmer da Alemanha, tal como as portas de Lubeck ou o Jungpfer de Hamburgo. Portanto, os loucos não são corridos das cidades de modo sistemático. Por conseguinte, é possível supor que são escorraçados apenas os estrangeiros, aceitando cada cidade tomar conta apenas daqueles que são seus cidadãos. Com efeito, é possível encontrar na contabilidade de certas cidades medievais as subvenções destinadas aos loucos, ou donativos feitos em favor dos insanos. Na verdade, o problema não é tão simples assim, pois há pontos de reunião deles onde os loucos, mais numerosos que em outras partes, não são autóctones. Em primeiro lugar, surgem os lugares de peregrinação: em Saint-Mathurin de Larchant, em Saint-Hildvert de Gournay, em Besançon, em Gheel: estas peregrinações eram organizadas e às vezes subvencionadas pelas cidades ou pelos hospitais». In Michel Foucault, História da Loucura, Filosofia, Éditions Gallimard, 1972, Editora Perspectiva, Colecção Estudos, tradução de José Netto, São Paulo, Brasil, 1978, 2010, ISBN 978-852-730-109-1.
           
Cortesia de EPerspectiva/JDACT