terça-feira, 30 de outubro de 2018

A Lei do Deserto. O Juiz do Egipto. Christian Jacq. «Levantou-se um vento quente que fazia os grãos de areia rodopiar chicoteando a pele. Com um pano branco pela cabeça, Paser não ligava ao vento, recordava as etapas do inquérito»

jdact e cortesia de wikipedia

«O calor era tão avassalador que apenas um escorpião negro se aventurava na areia do pátio da prisão, que, perdida entre o vale do Nilo e o oásis de Khargeh, a mais de cem quilómetros para oeste da cidade santa de Carnaque, albergava os reincidentes que carregavam pesadas penas de trabalhos forçados. Quando a temperatura o permitia, os prisioneiros conversavam na pista que ligava o vale ao oásis, e era cruzada por caravanas de burros transportando mercadorias. Pela décima vez, o juiz Paser apresentou o seu pedido ao chefe do campo, um colosso sempre pronto a castigar os indisciplinados. Não suporto o regime privilegiado de que beneficio. Quero trabalhar como os outros. Esguio, bastante alto, de cabelos castanhos, face larga e alta e olhos verdes acastanhados, Paser, cujos traços haviam perdido a juventude, mantinha uma distinção que impunha respeito. Tu não és como os outros. Sou um prisioneiro.
Mas não foste condenado. Estás aqui em segredo. Para mim, tu nem existes. O registo não tem nome nem número de identificação. Mas isso não me impede de partir pedras. Volta para o teu lugar. O chefe do campo desconfiava deste juiz. Pois não tinha ele deixado o Egipto inteiro boquiaberto, ao instruir o processo do famoso general Asher, acusado pelo melhor amigo de Paser, o tenente Suti, de ter torturado e assassinado um batedor, e de colaborar com inimigos de longa data, os Beduínos e os Líbios?
O cadáver do infeliz não fora encontrado no local indicado por Suti. Os jurados, não podendo condenar o general, contentaram-se em pedir um inquérito suplementar, investigação que gorou, uma vez que Paser, caindo numa armadilha, fora acusado de assassinar o seu pai espiritual, o sábio Branir, futuro sumo-sacerdote de Carnaque. Apanhado em flagrante delito, fora preso e deportado, à margem da lei. O juiz estava sentado à escriba na areia escaldante. Não parava de pensar na mulher, Néféret. Durante muito tempo, julgara que ela nunca viria a amá-lo, depois, a felicidade chegou, forte como o sol de Verão. Uma felicidade despedaçada, um paraíso de onde fora expulso sem esperança de regressar.
Levantou-se um vento quente que fazia os grãos de areia rodopiar chicoteando a pele. Com um pano branco pela cabeça, Paser não ligava ao vento, recordava as etapas do inquérito. Pequeno magistrado de província, perdido na grande cidade de Mênfis, tivera o azar de se mostrar demasiadamente consciencioso ao examinar em pormenor uma documentação algo estranha. Descobrira o assassinato de cinco veteranos que formavam a guarda de honra da grande esfinge de Gize uma carnificina disfarçada de acidente, o roubo de uma grande quantidade de ferro celeste destinado aos templos, e uma conspiração envolvendo altas personalidades. Mas não conseguira provar de forma definitiva a culpa do general Asher e a sua intenção de destronar Ramsés, o Grande. E, quando tinha finalmente conseguido obter plenos poderes para ligar entre si os elementos dispersos, o azar batera-lhe à porta. Paser lembrava-se de todos os momentos daquela noite terrível. A mensagem anónima avisando-o de que o seu mestre Branir corria perigo, a corrida desvairada pelas ruas da cidade, a descoberta do cadáver do sábio Branir, uma agulha de madrepérola espetada no seu pescoço, a chegada do chefe da polícia, que não hesitou em considerar Paser um assassino, a sórdida cumplicidade do deão do pórtico, o mais alto magistrado de Mênfis, o seu transporte em segredo para a prisão e, quando o seu fim chegasse, uma morte solitária sem que a verdade viesse a ser conhecida. A trama fora organizada com a máxima perfeição. Com o apoio de Branir, o juiz poderia ter investigado nos templos e identificado os ladrões do ferro celeste. Mas o seu mestre tinha sido eliminado, tal como os veteranos, por misteriosos agressores cujos fins continuavam obscuros. O juiz chegara à conclusão de que entre eles figuravam uma mulher e vários homens de origem estrangeira, as suas suspeitas recaíam sobre o químico Chéchi, o dentista Qadash e a mulher do transportador Denes, homem rico, influente e desonesto, mas não tinha certeza de nada.
Paser resistia ao calor, às tempestades de areia e à comida intragável, porque queria sobreviver, apertar Néféret nos braços e ver a justiça florescer de novo. O que teria inventado o deão do pórtico, seu superior hierárquico, para explicar o seu desaparecimento? E que calúnias espalharia a seu respeito? Fugir, era uma utopia, ainda que o campo se abrisse sobre as colinas vizinhas. A pé, não iria longe. Tinham-no mandado para ali, para que ali definhasse. Quando estivesse fraco, consumido, quando tivesse perdido a última réstia de esperança, divagaria, como um pobre louco repetindo incoerências. Nem Néféret nem Suti o abandonariam. Recusariam qualquer mentira e qualquer calúnia, procurá-lo-iam por todo o Egipto. Tinha de ser optimista e deixar o tempo correr-lhe nas veias». In Christian Jacq, A Lei do Deserto, O Juiz do Egipto, 1994, Bertrand Editora, 1996, ISBN 978-972-250-866-7.

Cortesia de BertrandE/JDACT