sábado, 13 de outubro de 2018

Claraboia. José Saramago. «Mas, que mal faz? Pronto! Já estou tapada. No tempo em que eu tinha a tua idade, se aparecesse assim diante da minha mãe levava uma bofetada»

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«Em todas as almas, como em todas as casas, além da fachada, há um interior escondido». In Raul Brandão

«(…) E, ainda, ninguém compreendia como de duas pessoas nada bonitas (os olhos de Justina eram belos e não bonitos) pudera nascer uma filha de tal maneira graciosa como fora a pequena Matilde. Dir-se-ia que a Natureza se enganara e que, depois, descobrindo o engano, se emendara fazendo desaparecer a criança. O certo é que o violento e áspero Caetano Cunha, linotipista no Notícias do Dia, sempre a estalar de gordura, novidades e má criação, após três exclamações agressivas calava-se a um murmúrio da mulher, a diabética e débil Justina que um sopro bastaria para derrubar. Era um mistério que não conseguia descobrir. Esperou ainda, mas o silêncio era total. Recolheu a casa, cerrando a porta com cuidado para não acordar a filha que dormia. Que dormia ou fingia dormir. Rosália espreitou pela frincha da porta. Pareceu-lhe ver estremecerem as pálpebras da filha. Abriu a porta completamente e avançou para a cama. Maria Cláudia cerrava os olhos com força demasiada e escusada. Rugas pequeninas, vincadas pelo esforço, assinalavam o lugar onde mais tarde viriam a aparecer os pés-de-galinha. A boca carnuda conservava ainda restos de bâton do dia anterior. Os cabelos castanhos, cortados curtos, davam-lhe um ar de garoto rufião que lhe tornava a beleza picante e provocadora, quase equívoca.
Rosália mirava a filha, um tanto desconfiada daquele sono profundo que tinha todo o ar de impostura. Deu um pequeno suspiro. Depois, num gesto de carinho maternal, aconchegou a roupa em volta do pescoço da filha. A reacção foi imediata. Maria Cláudia abriu os olhos. Riu muito, quis disfarçar, mas já era tarde: fez-me cócegas, mãezinha! Furiosa porque fora lograda e, sobretudo, porque a filha a surpreendera em flagrante delito de amor maternal, Rosália respondeu de mau humor: era assim que dormias, não era?! Já não te dói a cabeça, pois não? O que tu não queres é trabalhar, preguiçosa! Como a dar razão à mãe, a rapariga espreguiçava-se devagar, saboreando o distender dos músculos. A camisinha enfeitada de rendas abria-se no movimento em que o peito alargava, e deixava ver dois seios pequenos e redondos. Embora incapaz de dizer por que entendia que aquele movimento descuidado a ofendia, Rosália não pôde reprimir o seu desagrado e resmungou: vê lá se te tapas! Vocês, hoje, são de tal maneira que nem se envergonham na presença da vossa mãe! Maria Cláudia esbugalhou os olhos. Tinha-os azuis, de um azul brilhante, mas frios, tal como as estrelas que estão longe e de que, por isso, só percebemos a luminosidade.
Mas, que mal faz? Pronto! Já estou tapada. No tempo em que eu tinha a tua idade, se aparecesse assim diante da minha mãe levava uma bofetada. Olhe que era bater por bem pouco... Achas? Pois era o que tu precisavas. Maria Cláudia ergueu os braços num espreguiçamento disfarçado. Depois, bocejou: os tempos são outros, mãe. Rosália respondeu, enquanto abria a janela: são outros, são. São piores. Depois voltou à cama: vamos a saber: vais trabalhar ou não? Que horas são? Quase dez. Agora já é tarde. Mas há bocado não era. Doía-me a cabeça. As frases curtas e rápidas denunciavam irritação de parte a parte. Rosália fervia de cólera reprimida, Maria Cláudia estava aborrecida com as observações moralizadoras da mãe. Doía-te a cabeça, doía-te a cabeça! Fingida, é que tu és!... Já disse que me doía a cabeça. Que quer que lhe eu faça? Rosália explodiu: é assim que se responde, menina? Olha que sou tua mãe, ouviste?
A rapariga não se atemorizou. Encolheu os ombros, querendo significar com o gesto que aquele ponto não merecia discussão, e, de um salto, levantou-se. Ficou de pé, descalça, com a camisa de seda descendo-lhe pelo corpo macio e bem formado. Na fervura da irritação de Rosália caiu a frescura da beleza da filha e a irritação desapareceu como água em areia seca. Rosália sentiu-se orgulhosa de Maria Cláudia, do lindo corpo que ela tinha. As palavras que disse a seguir eram uma rendição: tem que se avisar para o escritório». In José Saramago, Claraboia, 1953, Editorial Caminho, 2011, ISBN 978-972-212-441-6.

Cortesia ECaminho/JDACT