quinta-feira, 11 de outubro de 2018

Xeque-mate da Rainha. Elizabeth Fremantle. «Ao final, todos formam uma fila atrás de lady Mary, que segura firme no braço de Susan Clarencieux, como se fosse desabar. As suas damas a seguem pela longa galeria..»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Ela odeia a própria ambiguidade, não se sente nem um pouco melhor do que todos os pérfidos membros da corte, mas não encontra coragem para dizer a que ponto abraçou a nova fé. Não poderia encarar o desapontamento de Mary. Esta é uma mulher cuja vida foi uma série de grandes desapontamentos, e Katherine não suportaria provocar mais um, mesmo que pequeno, dizendo a verdade. Hummm, Mary murmura. Quem dera fossem. Quem dera fossem. Ela manuseia distraidamente um rosário, suas contas tilintando conforme desliza os dedos pelo cordão de seda. E esta é a sua enteada? Sim, senhora. Deixe-me apresentar-lhe Margaret Neville. Meg dá um passo hesitante à frente e abaixa-se fazendo uma reverência profunda, como lhe ensinaram. Chegue mais perto, Margaret, Mary ordena, e sente-se, sente-se. Ela aponta para uma banqueta a seu lado. Agora, diga-me sua idade. Tenho dezassete anos, senhora. Dezassete. E está prometida para alguém, imagino. Sim, senhora, mas ele faleceu. Katherine a instruíra a dizer isso. Não seria adequado tornar público que o seu noivo era um dos enforcados por traição após a Peregrinação da Graça. Bem, teremos que encontrar um substituto, não é?
Só Katherine parece notar a cor esvair-se do rosto de Meg. Pode ajudar a sua madrasta a vestir-me. A missa não tem fim. Meg está impaciente e a mente de Katherine vagueia lembrando Seymour e seu olhar desconcertante, aqueles olhos azuis. Só de pensar nele já fica perturbada, contrai-se por dentro. Ela se força a lembrar a pena ridícula balançando e a ostentação, tudo exagerado, e concentra-se de novo na cerimónia. Lady Mary parece tão frágil que é espantoso que consiga carregar o bebé, redondo e robusto. O bispo Gardiner, que tem o rosto polpudo, como se fosse feito de cera derretida, preside à cerimónia. Ele demora, e a sua voz, lenta e interminável, deixa o latim feio. Katherine só consegue pensar nele interrogando sua irmã, aterrorizando-a, nisso e no dedo do pobre rapaz do coral. Dizem que Gardiner tramou nos últimos anos para ficar mais e mais perto do rei, que procura os seus conselhos tanto quanto os do arcebispo. A criança berra, com o rosto vermelho, sem descanso, até a água benta ser derramada sobre a sua cabeça. Então fica completamente quieta, como se Satã tivesse sido expulso, e Gardiner adopta uma expressão presunçosa, como se fosse feito seu, e não de Deus.
O rei não está presente. E Wriothesley, o pai da criança, parece perturbado. É um homem com cara de doninha, um ar permanente de desculpas e uma tendência a fungar; é lorde do selo privado e alguns dizem que tem as rédeas da Inglaterra nas mãos junto com Gardiner, mas não se imaginaria aquilo olhando para ele. Katherine repara em seus olhos cor de barro que vão com frequência até à porta, ansiosos, enquanto estala os dedos distraidamente, de modo que um leve claque cartilaginoso pontua a fala monótona de Gardiner. Uma desfeita como aquela poderia significar qualquer coisa em um rei cujos desejos mudam de uma hora para outra; o lorde do selo privado pode ter as rédeas da Inglaterra nas mãos, mas isso não significa nada sem a protecção dele. Wriothesley deveria saber tudo sobre os caprichos do rei: afinal de contas, foi um dos homens de Cromwell, outro em quem não se pode confiar, mas conseguiu escapar e se desvencilhar de sua companhia assim que a maré virou.
Ao final, todos formam uma fila atrás de lady Mary, que segura firme no braço de Susan Clarencieux, como se fosse desabar. As suas damas a seguem pela longa galeria, passando diante de uma multidão de cortesãos que se abre conforme ela se aproxima. Seymour está entre eles, e duas das garotas mais jovens dão risadinhas tolas quando ele sorri e levanta o chapéu com aquela pena ridícula na direcção delas. Katherine desvia os olhos, fingindo estar fascinada com o comentário da velha lady Butte sobre o modo de se vestir dos jovens, a interpretação livre da lei suntuária e o que foi que aconteceu com a cortesia. No seu tempo as coisas eram diferentes, a mulher continua, e ninguém mais sabe mostrar respeito pelos mais velhos? Katherine ouve de leve Seymour dizer seu nome com algum galanteio sobre as suas jóias, sem dúvida insincero. Ela olha brevemente na sua direcção fazendo um aceno rígido com a cabeça antes de se voltar para o desfile de comentários tediosos de lady Butte». In Elizabeth Fremantle, Xeque-mate da Rainha, 2013, Editora Paralela, Editora Schwarcz, 2016, ISBN 978-858-439-003-8.
               
Cortesia de EParalele/ESchwarcz/JDACT