segunda-feira, 22 de outubro de 2018

His Sinful Secret. Emma Wildes. «Antónia colocou a banqueta dourada do toucador em cima da manta e empurrou Michael devagar para que se sentasse nela. Se bem me lembro…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«O erro de cálculo foi fatal. Quando Michael Hepburn se virou, um segundo mais tarde do que o necessário para evitar a facada em cheio, a ténue luz da luz lhe proporcionou uma imagem vaga da figura na penumbra. Percebeu que a afiada lâmina atravessou a fina casaca de brocado e sentiu a fria mordida do aço no corpo. Uma dor aguda o invadiu, inclusive quando, de forma reflexa, deu um golpe com o pé e ouviu o som surdo do pontapé. O assaltante grunhiu e recuou, cambaleando pelo chão de pedra engordurado, mas não demorou a recuperar o equilíbrio e lançou-se de novo sobre ele. Felizmente, dessa vez Michael não estava desprevenido. Ele esquivou-se inclinando o corpo para trás e deixou que o impulso do atacante o aproximasse o suficiente para lhe acertar um soco com a mão direita. Como o beco pestilento estava muito escuro, em vez de acertá-lo em pleno queixo, pegou de mau jeito num dos lados do pescoço. Ouviu-se um gemido agudo e Michael aproveitou para dar outro pontapé no desconhecido, mas desta vez, na entreperna. Jogo limpo era para quem se podia dar ao luxo da derrota. Isso tinha ele aprendido em Espanha. Ter uma morte honrosa tudo bem, mas, na sua opinião, viver era muito melhor, e não lhe ocorria nada mais sórdido do que perder a vida num beco imundo de Londres. O atacante conseguiu esquivar-se do pontapé, o que demonstrava que também ele se vira em mais de uma luta suja e havia previsto o golpe, mas patinou no chão escorregadio e caiu como um saco de batatas. Porém ele perdeu a faca, e enquanto se abaixava para reavê-la, Michael viu a figura pôr-se de pé com dificuldade, dar meia volta e sair correndo. A própria respiração dele abafou o estrondo dos pés correndo ao bater no chão.
Se não fosse pela sensação morna e melada do sangue que ensopava a sua roupa, talvez ele tivesse tentado caçar o homem para lhe arrancar alguma informação. Inferno, resmungou, abrindo a casaca riscada para olhar o ferimento. A camisa branca de linho já exibia um vivo tom de escarlate. Aquele mal parido, fosse lá quem fosse, pretendia causar-lhe dano de verdade. A lâmina devia ter colidido com uma costela, por isso, embora o ferimento sangrasse muito, Michael não considerou que fosse grave. Ele já havia sido ferido o suficiente para saber quando tivesse chegado o momento. Não obstante, aquele ferimento não podia ter sido mais inoportuno. Tirou o relógio do bolso do colete e semicerrou os olhos para poder ver a hora à escassa luz, procurando ignorar o fedor de lixo que o rodeava. Já era muito tarde, mas ele não podia voltar para casa naquele estado porque poderia encontrar alguém ainda acordado. A enorme mansão estava cheia de parentes e convidados de todo o tipo. Felizmente, tinha outras opções. Andou até onde o esperava o veículo que havia alugado a preço de ouro. A carruagem ducal teria chamado muito a atenção naquele lugar de negócios escusos e de contravenções, e albergues de telhados e portas desmanteladas, indicativos da sordidez do entorno. Certamente ele estava um pouco tonto quando chegou ao veículo. O cocheiro, um homem de rosto afilado e barba desastrosa, alarmou-se ao vê-lo aparecer. Caramba, algum problema, chefe? Está falando do sangue?, perguntou Michael com cinismo. Os bandidos estão ficando cada vez mais atrevidos. O cocheiro teve a delicadeza de não mencionar o quão tarde da noite era e o bairro de má reputação no qual se encontravam. Com uma boa gorjeta, ele se esqueceria do que havia visto. Michael deu-lhe um endereço, subiu no velho veículo e se instalou com muito cuidado no assento. O trajecto foi um tanto quanto agitado, mas, felizmente, não muito longo; não demoraram a sair daquele bairro horroroso e chegar a uma parte mais elegante, e segura, de Londres. Tratava-se de uma quinta elegante, mas discreta, nos arredores de Mayfair e, para seu alívio, via-se luz numa das janelas do andar superior. Ele desceu resmungando uma palavra de agradecimento e acrescentou uma quantidade substancial ao preço da viagem. Se me faz o obséquio, esqueça-se de mim e do incidente.
A julgar pelo semblante do homenzinho, decerto ele estava a pensar que as excentricidades da aristocracia, embora impenetráveis, eram proveitosas e, após assentir com a cabeça, voltou para o assento suspenso, incitou o esquálido cavalo e o coche se afastou com grande estrépito. Apesar da hora, a porta da elegante mansão foi aberta por um homem com uma cicatriz no rosto e semblante impassível. Estava de camisolão e o cabelo escuro alvoroçado, o que indicava que já se havia retirado para dormir. Eram quase da mesma estatura e, embora lhe falasse com respeito, o olhar fixo com o qual olhava para Michael não era sinal de comedimento. Afastou-se e o convidou a entrar. Senhor Marquês, entre por favor. Michael entrou. Lamento tirá-lo da cama, Lawrence. Não precisa se desculpar, senhor, em absoluto. Não fossem as gotas de sangue que caíam no esplêndido piso de mármore branco e preto do vestíbulo, pareceria que estavam trocando palavras corteses; mas Michael e Lawrence não eram amigos, apenas companheiros. Lady Taylor está..., ocupada? Esta noite ela está completamente só, milorde, disse Lawrence com ironia, examinando a casaca riscada de Michael. Bom. Pelo menos ele não interromperia nada pessoal. Antónia não costumava falar sobre os seus passatempos íntimos, e ele também nem perguntava. Mas ele desconfiava que entre Lawrence e ela havia algo mais do que uma relação de mordomo e senhora; em todo caso, isso não era da sua conta, pois nenhum dos dois dissera nada sobre isso e ele preferia assim. Eram sócios, embora com uma relação bem mais estreita do que o habitual, e Michael preferia separar os negócios das questões pessoais. Se importaria de lhe comunicar que estou aqui? Ela ficará encantada por recebê-lo, como de costume. Apesar dos ferimentos e das desastrosas consequências, Michael arqueou uma sobrancelha, divertido pelo tom insolente do jovem. Lawrence nem sequer pestanejou ao vê-lo chegar ensanguentado no meio da noite; tampouco lhe fizera perguntas sobre o ferimento. E jamais o faria, claro. Ele já havia visto coisas piores, e sabia manter a boca bem fechada. No entanto, o palpável antagonismo era significativo. Dali a pouco, Antónia andava para lá e para cá perto dele com o sensual corpo envolto em seda e os lábios apertados à guisa de reprovação. Estavam na alcova dela, que estendeu uma manta no chão para que o sangue não manchasse o caríssimo tapete. Pingentes de seda dourado claro enfeitavam a cama com dossel e as janelas estavam abertas para o jardim dos fundos.
Antónia colocou a banqueta dourada do toucador em cima da manta e empurrou Michael devagar para que se sentasse nela. Se bem me lembro, disse ela, puxando a camisa de dentro dos calções, fazendo caso omisso para a careta de dor que ele fez, eu lhe adverti que tivesse cuidado. A minha fonte disse-me que tinha informações sobre Roget, de modo que aproveitei a ocasião e aceitei me encontrar com ele. Além do mais, não me atacaram lá, mas quando eu estava voltando por aqueles becos de má reputação para o coche de aluguer. E isso lhe surpreende? Quem mora em bairros caros não costuma ter informações em primeira mão sobre assassinos e traidores. Certo». In Emma Wildes, His Sinful Secret, 2010, Baror International, Random House Mondadori, Megustaleer, 2011, ISBN- 978-840-138-431-8.

Cortesia de Megustaleer/JDACT